Familiares não podem mais ser obrigados a revista vexatória em visita a jovens infratores

Adolescentes internos da Fundação Casa (antiga Febem), em São Paulo: revista vexatória inibe as visitas dos familiares  Marcos Santos/USP Imagens

Projeto proíbe revista vexatória de visitante de jovem infrator internado

  

Paola Lima | 01/12/2015, 10h53 - ATUALIZADO EM 01/12/2015, 11h21

Senadores aprovaram proposta neste mês e a enviaram para a Câmara. Segundo o texto, familiares que visitam adolescentes que cumprem medidas socioeducativas não podem mais ser obrigados a tirar a roupa e submeter-se a procedimentos constrangedores de revista antes da visita.

Tirar toda a roupa.  Agachar-se em cima de um pequeno espelho. Primeiro de frente, depois de costas. Saltar. A série de procedimentos constrangedores faz parte da rotina dos familiares de quase 20 mil adolescentes que cumprem medidas socioeducativas no Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) em todo o Brasil. Independentemente da idade ou do sexo, eles precisam cumprir os procedimentos para conseguir ver o filho, a filha, o irmão ou o neto numa das mais de 300 unidades de atendimento espalhadas pelo país.

Na falta de uma lei que discipline a revista de visitantes no Sinase, os familiares que visitam os internos são obrigados a se sujeitar aos mesmos métodos de revista pessoal adotados nas prisões. Humilhante e ofensiva, condenada na Constituição e por entidades judiciárias e de direitos humanos, a prática ficou conhecida como revista vexatória.

A boa notícia é que ela está prestes a ser banida do país.

O Senado aprovou em novembro o Projeto de Lei do Senado (PLS) 451/2015, que acaba com a revista vexatória dos visitantes das unidades de internação do Sinase. Enviada para a Câmara dos Deputados, a proposta acrescenta à Lei 12.594/2012, que instituiu o sistema, dispositivos disciplinando a revista pessoal obrigatória para acesso às unidades de internação.

Tratamento desumano

O texto proíbe qualquer forma de “desnudamento ou introdução de objetos na pessoa, tratamento desumano ou degradante” e determina que a revista será feita com uso de equipamentos eletrônicos, como detectores de metais e aparelhos de raios X.

Para o autor do projeto, senador Eduardo Amorim (PSC-SE), a lei será um instrumento capaz de inibir a revista vexatória.

— Esse procedimento afeta a dignidade da pessoa, na medida em que a submete a procedimentos extremamente humilhantes, incluindo posições desconcertantes e até a manipulação de órgãos genitais — lamenta o senador.

Em 2006, uma inspeção feita pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em unidades de internação de 22 estados e do Distrito Federal apontou que apenas três estados não adotavam revista vexatória: Bahia, Ceará e Santa Catarina. Nestes dois últimos, as famílias não eram revistadas, mas os internos sim, após as visitas.

Desde então, pelo menos em dez estados foram editadas normas disciplinando as revistas em visitantes de presídios e unidades socioeducativas, banindo as práticas vexatórias.

Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso, Paraíba e Amazonas têm alguma legislação sobre a questão, mas, mesmo assim, a revista continua sendo a prática mais comum.

No Rio de Janeiro, os deputados estaduais derrubaram os vetos do governador Luiz Fernando Pezão às propostas aprovadas na assembleia legislativa que extinguiram, nos presídios e no sistema socioeducativo, o desnudamento, o agachamento sobre espelho e a inspeção anal e vaginal de familiares em dias de visita. Para evitar que as revistas persistissem nos sistema, os parlamentares também entregaram ao governo fluminense um cheque no valor de R$ 19 milhões para compra de 33 scanners corporais.

O senador Eduardo Amorim explica, porém, que a compra de equipamentos é a melhor solução para substituir as revistas a visitantes, mas não é a única.

— Se não há orçamento para adquirir esses equipamentos, a revista manual pode ser a regra. Todavia, o desnudamento fica expressamente proibido — esclarece.

A revista manual está prevista no PLS 451/2015. Ela pode ser adotada, por exemplo, no caso de a pessoa ter problemas de saúde que a impeçam de se submeter a determinados equipamentos de revista eletrônica ou no caso de a revista eletrônica apontar a suspeita de porte ou posse de objetos proibidos.

Sala separada

Para assegurar que não haja excessos, a relatora do projeto na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), senadora Ana Amélia (PP-RS), incluiu uma emenda no texto definindo o que é revista manual e reforçando a proibição do desnudamento e das manobras constrangedoras.

Com a emenda, o texto define revista manual como “inspeção realizada mediante contato físico da mão do agente público competente sobre a roupa da pessoa revistada, sendo vedados o desnudamento total ou parcial, o uso de espelhos e os esforços físicos repetitivos, bem como a introdução de quaisquer objetos nas cavidades corporais da pessoa revistada”.

O projeto esclarece ainda os procedimentos sobre revista manual, que terá de ser feita por servidor habilitado e do mesmo sexo da pessoa revistada, de forma individual. Caso a pessoa a ser revistada assim o deseje, poderá ser realizada em sala apropriada apartada do local da revista eletrônica e sem a presença de terceiros.

— Esse projeto chega em boa hora. A revista vexatória viola o principio da dignidade da pessoa humana e dificulta que o adolescente tenha acesso à convivência familiar e comunitária. Além disso, os scanners e essas outras formas de inspeção são muito mais adequadas — afirma a senadora.

Ana Amélia cita ainda uma recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que condena a prática e uma resolução do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária que veda a realização de revista vexatória, substituindo-a pelo uso de equipamentos eletrônicos.

Além disso, a própria legislação do Sinase proíbe a submissão dos adolescentes à situação mais gravosa do que seria submetido um adulto nas mesmas condições.

Alternativas são aparelho de raios X e inspeção manual “humanizada”

Nas seis unidades de internação de Brasília, a revista com desnudamento e agachamento é adotada por mera falta de uma norma específica para revista no Sinase. É o que explica a subsecretária do Sistema Socioeducativo do Distrito Federal, Maria Conceição Paula. Ela acredita que a aprovação do PLS 451/2015 no Congresso preencherá essa lacuna e resolverá o problema.

A subsecretária garante que há, sim, formas alternativas de revista dos familiares. O uso de aparelhos de raios X e de scanners corporais é a principal opção, mas não necessariamente a única. Revistas manuais e humanizadas poderiam ser suficientes.

Maria Conceição reforça que o fim da revista vexatória não compromete a segurança das unidades de internação. Ela dá como exemplo um levantamento da Defensoria Pública do Estado de São Paulo que revelou que, após a realização de 3,4 milhões de revistas íntimas vexatórias em presídios ao longo de 2012, em apenas 0,013% foram encontrados aparelhos celulares e em 0,01% foram achados entorpecentes. Nenhuma arma foi encontrada. Nas revistas em unidades socioeducativas, as apreensões foram ainda menores, chegando próximo a zero.

Estatísticas

Em Goiás, a revista vexatória foi extinta em 2012, e os procedimentos passaram a ser feitos por meio de detectores de metal, com agentes penitenciários capacitados para o novo modelo. Dados da Secretaria de Estado da Administração Penitenciária e Justiça mostram que, nos três anos de revista humanizada, não houve aumento no número de apreensões.

A subsecretária afirma ainda que o Distrito Federal já tem um projeto de compra de equipamentos com recursos do Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente. O processo, no entanto, é demorado.

— Se a lei sair, tudo ficará mais fácil — diz Maria Conceição.

O consultor legislativo do Senado Tiago Ivo Odon, especialista na área de direito penal e penitenciário, também afirma que o fim das revistas íntimas não vai comprometer a segurança das unidades. Em sua opinião, as vistorias pelos detectores de metal e pelos aparelhos de raios X são bem completas — o PLS 451/2015 prevê que até os funcionários das unidades de internação devem passar por essa revista, seja por meio de aparelho, seja manual.

— O ideal é que a unidade tenha o equipamento. Não tendo, a revista manual vai depender também de quem está fazendo a revista. Pode ser que haja uma brecha e um risco de comprometer a segurança, mas aí estamos diante de dois bens jurídicos em conflito: de um lado, a privacidade da pessoa; do outro, a segurança. O projeto tenta de alguma forma resolver essa proporcionalidade — pondera.

Ao chegar à Câmara, o PLS 451/2015 deve ser apensado ao PL 404/2015, da deputada Luiza Erundina (PSB-SP), que também pede o fim das revistas vexatórias no Sinase.

Por causa da humilhação, familiares deixam de visitar adolescentes

As revistas vexatórias são o maior obstáculo para a manutenção do vínculo afetivo dos adolescentes que cometeram atos infracionais com suas famílias. Na avaliação das entidades de direitos humanos e dos especialistas que atuam na área, a revista vexatória tem impacto direto na redução das visitas. Porque, por um lado, os parentes não querem passar pela situação considerada humilhante e, por outro lado, os próprios adolescentes pedem que eles não os visitem para não precisarem passar por ela.

— O primeiro impacto é a diminuição do contato com a família. Pais e irmãos, principalmente, deixam de visitar o interno. As mães são as que persistem porque, mesmo com o pedido dos adolescentes para que não apareçam, continuam indo — afirma Raquel Lima, coordenadora do projeto Prisão sem Muros, do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC).

Raquel explica que o contato com a família é essencial para a manutenção do vínculo afetivo e para ressocialização dos adolescentes. Nesse estágio do desenvolvimento emocional, eles precisam do contato familiar para amadurecer e saber que têm para onde voltar depois do cumprimento da medida socioeducativa.

Fila de parentes

A subsecretária do Sistema Socioeducativo do Distrito Federal, Maria Conceição Paula, ressalta que, em sua maioria, os adolescentes que cometem atos infracionais têm relações conturbadas com a família, principalmente com o pai. Ao ter esse contato reduzido de forma significativa durante os meses ou anos de internação, as relações afetivas ficam ainda mais comprometidas.

— Se olharmos uma fila de parentes à espera de visitar um interno nessas unidades, veremos em sua maioria senhoras. Um ou outro homem apenas. Em geral, um avó. A família não aguenta enfrentar as revistas como elas são. Se acabassem, conseguiríamos ampliar a participação familiar [com tias, avós, primos] na ressocialização desses jovens e teríamos um resultado muito mais positivo — argumenta.

A advogada da ONG internacional Conectas Direitos Humanos, Vivian Calderoni, alerta ainda para outro problema das revistas íntimas. Além de os parentes passarem pelos procedimentos vexatórios, os próprios adolescentes são revistados várias vezes ao dia, a cada atividade que fazem fora dos quartos.

— Muitas vezes, eles não querem mais ir para as atividades para não passarem por esse constrangimento muitas vezes num mesmo dia. E isso é interpretado como se eles fossem vagabundos, que não quisessem nem sequer sair das camas — diz.

Outra questão das revistas íntimas é que é sempre o mesmo servidor a acompanhar o menor e revistá-lo, o que acaba criando um convívio ruim entre as duas partes. Maria Conceição admite que a situação é constrangedora também para os responsáveis pela revista, que costumam apoiar a adoção de aparelhos eletrônicos para substituí-las.

No final do ano passado, o Núcleo Especializado de Infância e Juventude da Defensoria Pública do Estado de São Paulo lançou uma nota de repúdio à realização de revista vexatória aos visitantes de adolescentes custodiados no Sinase. Junto à nota, foi criado um abaixo-assinado pedindo o fim da revista vexatória no sistema socioeducativo. Mais de 1,6 mil pessoas assinaram.

Já aprovadas no Senado, duas propostas dependem da Câmara

Além do PLS 451/2015, recém-aprovado, o Senado aprovou no ano passado outro projeto de lei que proíbe a revista vexatória em presídios do país. O PL 7.764/2014, da ex-senadora Ana Rita, está na Comissão de Segurança Pública da Câmara, sob a relatoria do deputado João Campos (PSDB-GO), que promete levar a proposta ao Plenário neste ano.

Para a advogada da ONG Conectas, Vivian Calderoni, o país se encontra em um movimento para banir a prática, mas cabe ao Congresso Nacional acelerar esse processo, padronizando o procedimento em todo o Brasil por meio de uma lei federal.

Maus-tratos

Organismos internacionais como a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização dos Estados Americanos (OEA) já consideram a revista vexatória uma prática de maus-tratos e até um caso de tortura, a depender do grau de exposição da pessoa.

O fim da prática também ganhou o apoio da Rede de Justiça Criminal, composta pela Conectas, pela Associação pela Reforma Prisional, pelo Instituto de Defensores de Direitos Humanos, pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa, pelo Instituto Sou da Paz, pelo Instituto Terra, Trabalho e Cidadania, pela Justiça Global e pela Pastoral Carcerária.

O Conselho Episcopal Pastoral, que é ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), divulgou uma nota reprovando a revista vexatória nos presídios.

No ano passado, as entidades lançaram a campanha Pelo Fim da Revista Vexatória, com relatos de parentes dos presos e estatísticas sobre a prática.

 

Agência Senado

 

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