Da percepção do salário no regime da comunhão parcial de bens

Da percepção do salário no regime da comunhão parcial de bens

Pedro Linhares Della Nina

O STJ, em 21/11/23, enfrentou questão jurídica sobre a percepção dos proventos (art. 1.659, VI, do Código Civil) ser ato particular do cônjuge. Porém, quando percebido, a remuneração integra a meação de casamento contraído pelo regime da comunhão parcial.

terça-feira, 2 de abril de 2024
Atualizado às 12:56

Há curioso dispositivo no Código Civil que declara, no casamento celebrado pelo regime da comunhão parcial de bens, que a percepção do salário seria incomunicável, isto é, que o recebimento do provento somente caberia ao cônjuge que a recebe.

Segue a regra do art. 1.659, VI, do CC:

Art. 1.659. Excluem-se da comunhão:

I. os bens que cada cônjuge possuir ao casar, e os que lhe sobrevierem, na constância do casamento, por doação ou sucessão, e os sub-rogados em seu lugar;
II. os bens adquiridos com valores exclusivamente pertencentes a um dos cônjuges em sub-rogação dos bens particulares;
III. as obrigações anteriores ao casamento;
IV. as obrigações provenientes de atos ilícitos, salvo reversão em proveito do casal;
V. os bens de uso pessoal, os livros e instrumentos de profissão;
VI. os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge;
VII. as pensões, meios-soldos, montepios e outras rendas semelhantes.

Evidentemente, o significado do inciso VI é de que, materialmente. só poderia ser recebido, na fonte pagadora, o salário pelo cônjuge beneficiário/credor. Porém, após o seu auferimento, o salário percebido integraria o patrimônio do casal, seguindo a lógica do regime da comunhão parcial de bens.

Maria Helena Diniz, em seu Curso de Direito Civil Brasileiro n.o 5 - Direito de Família (24a ed., Editora Saraiva, págs. 170/171), ensina que:

"Parece-nos que há comunicabilidade dos bens adquiridos onerosamente com os frutos civil do trabalho (CC, art. 1.660, V) e com os proventos, ainda que em nome de um deles (nesse teor: STJ, REsp 646.529-SP, 3a T., rel. Nancy Andrighi, j, 21/6-2005). Logo, o art. 1.659, VI, deve ser interpretado em consonância com o art. 1.660, V, prestigiando o esforço comum na aquisição de bens na constância do casamento."

De igual forma, aclarando a correta interpretação ao art. 1.659, VI, do CC, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filha, no Novo Curso de Direito Civil - Volume VI - Direito de Família (1a ed., Editora Saraiva, págs. 344/345), formulam pitoresco aviso:

"Advertimos, todavia, que os bens comprados com esses valores, por seu turno, são partilháveis, por conta da regra geral, já analisada acima, que determina, na comunhão parcial, a divisão dos bens adquiridos onerosamente por um ou ambos os cônjuges: "o salário que recebo da empresa em que trabalho é meu; todavia, o carro que eu compro com ele, no curso do casamento, pertencerá, por metade, à minha esposa"."

Carlos Roberto Gonçalves, na obra Direito Civil Brasileiro VI - Direito de Família (ed. 5a, págs. 426/427), reconhece que a percepção da salário não se comunicaria, asseverando que não há como interpretar o art. 1.659, VI, do CC, prejudicando o cônjuge que realizou o pagamento das despesas correntes, em detrimento do outro que poupou todo o seu salário em conta individual:

"Se se interpretar que o numerário recebido não se comunica, mas somente o que for com ele adquirido, poderá esse entendimento acarretar um desequilíbrio no âmbito financeiro das relações conjugais, premiando injustamente o cônjuge que preferiu conservar em espécie os proventos do seu trabalho, em detrimento do que optou por converter suas economias em patrimônio comum."

Há precedentes formados sobre o art. 1.659, VI, do CC, todos no sentido de que o direito ao recebimento do salário seria incomunicável, mas, uma vez recebido, o salário integraria o patrimônio do casal casado pelo regime da comunhão parcial:

"RECURSO ESPECIAL. CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. NÃO OCORRÊNCIA. UNIÃO ESTÁVEL. REGIME DE BENS. COMUNHÃO PARCIAL. BENS ADQUIRIDOS ONEROSAMENTE NA CONSTÂNCIA DA UNIÃO. PRESUNÇÃO ABSOLUTA DE CONTRIBUIÇÃO DE AMBOS OS CONVIVENTES. PATRIMÔNIO COMUM. SUB-ROGAÇÃO DE BENS QUE JÁ PERTENCIAM A CADA UM ANTES DA UNIÃO. PATRIMÔNIO PARTICULAR. FRUTOS CIVIS DO TRABALHO.  INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA. INCOMUNICABILIDADE APENAS DO DIREITO E NÃO DOS PROVENTOS.

1. Ausência de violação do art. 535 do Código de Processo Civil, quando o acórdão recorrido aprecia com clareza as questões essenciais ao julgamento da lide, com abordagem integral do tema e fundamentação compatível.
2. Na união estável, vigente o regime da comunhão parcial, há presunção absoluta de que os bens adquiridos onerosamente na constância da união são resultado do esforço comum dos conviventes.
3. Desnecessidade de comprovação da participação financeira de ambos os conviventes na aquisição de bens, considerando que o suporte emocional e o apoio afetivo também configuram elemento imprescindível para a construção do patrimônio comum.
4. Os bens adquiridos onerosamente apenas não se comunicam quando configuram bens de uso pessoal ou instrumentos da profissão ou ainda quando há sub-rogação de bens particulares, o que deve ser provado em cada caso.
5. Os frutos civis do trabalho são comunicáveis quando percebidos, sendo que a incomunicabilidade apenas atinge o direito ao seu recebimento.
6. Interpretação restritiva do art. 1.659, VI, do Código Civil, sob pena de se malferir a própria natureza do regime da comunhão parcial.
7. Caso concreto em que o automóvel deve integrar a partilha, por ser presumido o esforço do recorrente na construção da vida conjugal, a despeito de qualquer participação financeira.
8. Sub-rogação de bem particular da recorrida que deve ser preservada, devendo integrar a partilha apenas a parte do bem imóvel integrante do patrimônio comum.
9. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE PROVIDO." (Recurso Especial n. 1.295.991, relatado pelo Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, da 3a Turma, julgado em 11/04/2013)

Inclusive foi noticiado pelo STJ1 caso envolvendo partilha de imóvel e a lógica da incomunicabilidade da percepção dos proventos (art. 1.659, VI, do Código Civil), mas repita-se, não do salário recebido, que deve integrar a meação de casamento contraído pelo regime da comunhão parcial. Segue, assim, a enorme - mas explicativa - ementa do Recurso Especial n.º 2.106.053, relatado pelo Ministro Marco Aurélio Bellizze, da 3ª Turma:

RECURSO ESPECIAL. AÇÃO RESCISÓRIA. 1. SEPARAÇÃO JUDICIAL. DISCUSSÃO RELACIONADA À PARTILHA DE IMÓVEL ENTRE OS EX-CÔNJUGES (RECORRENTE E RECORRIDO). 2. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NÃO OCORRÊNCIA. QUESTÕES DEVIDAMENTE ANALISADAS PELO TRIBUNAL DE ORIGEM. 3. CASAMENTO SOB O REGIME DA COMUNHÃO PARCIAL DE BENS. IMÓVEL ADQUIRIDO ONEROSAMENTE NA CONSTÂNCIA DO MATRIMÔNIO E REGISTRADO EM NOME DE AMBOS OS CÔNJUGES. BEM QUE INTEGRA O PATRIMÔNIO COMUM. INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 1659, II, E 1.660, I, DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. AQUISIÇÃO DO IMÓVEL COM RECURSOS PROVENIENTES DO TRABALHO DO RECORRIDO. IRRELEVÂNCIA. PRECEDENTES. REFORMA DO ACÓRDÃO RECORRIDO QUE SE IMPÕE. 4. RECURSO PROVIDO.

1. O propósito recursal é decidir se houve negativa de prestação jurisdicional e se o imóvel objeto do litígio deve ser partilhado entre a recorrente e o recorrido, tendo em vista que fora adquirido em nome de ambos e na constância do casamento pelo regime da comunhão parcial de bens.

2. Analisando detidamente os acórdãos proferidos pelo Tribunal de origem, não se verifica a apontada negativa de prestação jurisdicional, pois todas as questões suficientes ao deslinde da controvérsia foram devidamente examinadas. Afasta-se, portanto, a violação ao art. 1.022 do CPC/2015.

3. No regime da comunhão parcial, os bens adquiridos onerosamente na constância do casamento se comunicam, pois a lei presume que a sua aquisição é resultado do esforço comum do casal, tanto que estabelece essa regra mesmo quando o bem estiver em nome de apenas um dos cônjuges. É o que estabelecem os arts. 271, I, do Código Civil 1916 e 1.660, I, do Código Civil de 2002. 

3.1 Na hipótese, o Tribunal de origem excluiu a meação da recorrente em relação ao imóvel objeto do litígio, a despeito de ter sido adquirido, de forma onerosa, na constância do casamento e registrado em nome de ambos os cônjuges, sob o fundamento de que o bem teria sido adquirido com recursos "provenientes do trabalho exclusivo do varão", o que faria incidir a regra de exclusão da comunhão prevista no art. 1.659, inciso II, do CC/2002 (correspondente ao art. 269, II, do CC/1916).

3.2 Ocorre que, nos termos da jurisprudência desta Corte Superior, ainda que somente um dos cônjuges tenha contribuído financeiramente para a aquisição do bem na constância do casamento sob o regime da comunhão parcial, como no caso, este bem passará a integrar o patrimônio do casal, em razão da presunção legal de que sua aquisição foi decorrente do esforço comum dos cônjuges.

3.3 Ademais, não obstante o inciso VI do art. 1.659 do Código Civil de 2002 estabeleça que devem ser excluídos da comunhão "os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge", a incomunicabilidade prevista nesse dispositivo legal atinge apenas o direito ao recebimento dos proventos em si. Porém, os bens adquiridos mediante o recebimento desses proventos serão comunicáveis. Precedentes.

3.4 Dessa forma, sendo o imóvel adquirido de forma onerosa na constância do casamento sob o regime da comunhão parcial de bens, configura patrimônio comum, independentemente de ter sido adquirido com verba exclusiva do recorrido, devendo, portanto, integrar a partilha.

3.5 Além disso, no caso, a escritura pública de compra e venda do imóvel litigioso está registrada em nome da recorrente e do recorrido, não havendo qualquer declaração de nulidade da mesma pelo Tribunal de origem. Assim, mesmo que não integrasse o patrimônio comum, metade do bem já pertenceria a cada consorte, pois no momento em que as partes compareceram em cartório e firmaram a escritura de compra e venda em nome dos dois, concordaram que o bem pertenceria a ambos.

4. Recurso especial provido

Assim, seja pela literalidade da regra, seja pela inequívoca posição doutrinária, seja pelos precedentes do STJ, a regra do art. 1.659, VI, do CC, é clara e prevê que o recebimento do salário - e somente isso - seria incomunicável. Porém, após o recebimento, o quantum integraria o patrimônio comum do casal que adotou o regime da comunhão parcial.

Convém destacar que a Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil, ao menos nas propostas iniciais, demonstrou o interesse em revogar o inciso VI, do art. 1.659, o que certamente se dá pela tentativa canhestra de se interpretar a regra no sentido de que cada salário seria incomunicável, e não a sua percepção, como é óbvio.

-----------------------------
1 https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2024/22022024-Na-comunhao-parcial--imovel-comprado-com-recursos-de-apenas-um-dos-conjuges-tambem-integra-partilha.aspx

Pedro Linhares Della Nina
Advogado e Professor da Universidade Candido Mendes/RJ, mestre em Ciências Jurídicas pela UAL-Lisboa, pós-graduado em Direito Empresarial e em Litigation, ambos pela FGV-Rio de Janeiro.

Fonte: Migalhas

_________________________________________

DECISÃO
22/02/2024 07:00 
 

Na comunhão parcial, imóvel comprado com recursos de apenas um dos cônjuges também integra partilha

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reafirmou o entendimento de que o imóvel adquirido de forma onerosa durante casamento sob o regime da comunhão parcial de bens deve integrar a partilha após o divórcio, mesmo que o bem tenha sido comprado com recursos exclusivos de um dos cônjuges.

"Apesar de o inciso VI do artigo 1.659 do Código Civil (CC) estabelecer que devem ser excluídos da comunhão os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge, a incomunicabilidade prevista nesse dispositivo legal atinge apenas o direito ao recebimento dos proventos em si. Porém, os bens adquiridos mediante o recebimento desses proventos serão comunicáveis", afirmou o relator, ministro Marco Aurélio Bellizze.

Após se divorciar de seu marido, uma mulher ajuizou uma ação para requerer a abertura de inventário dos bens adquiridos na constância do casamento, com a respectiva divisão igualitária. Reconhecida a partilha pelo juízo de primeiro grau, o marido apelou ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), o qual excluiu um dos imóveis da partilha sob o fundamento de que a sua aquisição ocorreu com uso de recursos depositados na conta corrente do homem, provenientes exclusivamente do trabalho dele.

Com o trânsito em julgado do processo, a mulher ajuizou ação rescisória ao argumento de que o tribunal fluminense, ao não reconhecer o direito da autora à meação do imóvel do casal, teria violado o artigo 2.039 do Código Civil. O TJRJ julgou improcedente a ação rescisória.

Aquisição feita durante o casamento é presumida como resultado do esforço comum do casal

O ministro Marco Aurélio Bellizze observou que, no regime da comunhão parcial, os bens adquiridos onerosamente na constância do casamento se comunicam, pois a lei presume que a sua aquisição é resultado do esforço comum do casal, tanto que estabelece essa regra mesmo quando o bem estiver em nome de apenas um dos cônjuges.

Bellizze ponderou que, se assim não fosse, o cônjuge que não trabalha, por exemplo, para cuidar dos filhos e do lar, não teria direito a nenhum patrimônio adquirido onerosamente na constância do casamento, o que seria um completo desvirtuamento do regime da comunhão parcial de bens.

Citando precedentes da Terceira Turma, o ministro apontou que, na comunhão parcial, os bens adquiridos onerosamente na constância da união sempre são presumidos como resultado do esforço comum do casal.  

"Isso significa dizer, de um lado, que não é necessária a comprovação de que houve colaboração de ambos os conviventes na aquisição onerosa de patrimônio no curso da união, e, de outro lado, que se mostra juridicamente inócua e despicienda a comprovação de que houve aporte financeiro de apenas um dos conviventes", completou.

Escritura do imóvel foi lavrada em nome do casal

O relator também ressaltou que a escritura pública de compra e venda do imóvel está registrada em nome da mulher e do homem, não tendo havido qualquer declaração de nulidade pelo TJRJ sobre esse tema. "Mesmo que não integrasse o patrimônio comum, 50% do bem já pertenceria a cada consorte, sendo, por conseguinte, impensável sua exclusão da partilha, pois, no momento em que as partes compareceram em cartório e firmaram a escritura de compra e venda em nome dos dois, concordaram que o bem pertenceria a ambos", afirmou.

Por fim, o ministro ponderou que, antes do casamento, as partes já viviam em união estável reconhecida judicialmente, sendo que, nesse período, os então conviventes adquiriram um apartamento no mesmo edifício do imóvel discutido na hipótese dos autos, igualmente em nome de ambos, que foi regularmente partilhado.

"Caso prevaleça o acórdão recorrido, o imóvel adquirido onerosamente e registrado em nome de ambos na constância da união estável seria partilhável; enquanto o outro imóvel, adquirido nas mesmas circunstâncias (de forma onerosa e em nome de ambos), seria exclusivamente do recorrido apenas pelo fato de que, nesse momento, as partes já estavam casadas. Tal situação, de extrema perplexidade, não se revela nem um pouco razoável, pois o casamento não tem o condão de suprimir direitos da esposa", concluiu ao dar provimento ao recurso para determinar a partilha do imóvel.

O número deste processo não é divulgado em razão de segredo judicial.

Superior Tribunal de Justiça (STJ)

Notícias

Conheça o Imposto Seletivo previsto na reforma tributária

Conheça o Imposto Seletivo previsto na reforma tributária 26/04/2024 - 18:32 Será apurado mensalmente e incidirá uma única vez sobre produtos prejudiciais à saúde e ao meio ambiente. Confira em Agência Câmara de Notícias

Lacunas e desafios jurídicos da herança digital

OPINIÃO Lacunas e desafios jurídicos da herança digital Sandro Schulze 23 de abril de 2024, 21h41 A transferência de milhas aéreas após a morte do titular também é uma questão complexa. Alguns programas de milhagens já estabelecem, desde logo, a extinção da conta após o falecimento do titular, não...

TJMG. Jurisprudência. Divórcio. Comunhão universal. Prova.

TJMG. Jurisprudência. Divórcio. Comunhão universal. Prova. APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE DIVÓRCIO - COMUNHÃO UNIVERSAL DE BENS - PARTILHA - VEÍCULO - USUCAPIÃO FAMILIAR - ÔNUS DA PROVA - O casamento pelo regime da comunhão universal de bens importa na comunicação de todos os bens presentes e futuros...