Artigo: Da incapacidade das pessoas com necessidades especiais - Mary Jane Lessa
Artigo: Da incapacidade das pessoas com necessidades especiais - Mary Jane Lessa
Publicado em 31/03/2015
Por Mary Jane Lessa*
No dia 21 de março foi comemorado o Dia Internacional da Síndrome de Down em diversos países, vez que esta data passou a fazer parte do calendário oficial dos 193 países membros da Organização das Nações Unidas (ONU). O dia 21/03 foi escolhido pela Associação Internacional da Síndrome de Down em alusão aos três cromossomos existentes no par de número 21 que as pessoas portadoras da síndrome possuem.
Hoje os portadores de Down não são mais considerados doentes, já que a síndrome foi classificada como uma ocorrência genética natural presente nos seres humanos. As suas características e efeitos variam enormemente de pessoa para pessoa, comprometendo o desenvolvimento intelectual do indivíduo, que através do apoio de amigos, familiares e profissionais multidisciplinares pode romper muitas barreiras. Atualmente temos exemplos de pessoas com Síndrome de Down que moram sozinhas, trabalham, votam, casam-se e vão à universidade.
Alguns dias atrás dei uma entrevista a uma rádio regional sobre o Dia Internacional da Síndrome de Down. Convidaram-me pelo fato de ser mãe de um rapaz de quase 15 anos que é portador da síndrome, e também por ser conselheira da Associação de Amigos e Familiares de Pessoas Especiais – Afago. Após essa entrevista, comecei a pensar a respeito da função notarial e registral em meio à realidade que esses indivíduos enfrentam quanto às leis de inclusão e demais leis que ora beneficiam, ora omitem alguns de seus direitos. Lembrei-me de quando lavrei uma escritura de um divórcio extrajudicial, onde uma das partes era uma mulher com Síndrome de Down, que tinha pleno gozo de suas faculdades mentais, era alfabetizada e muito questionadora, características que chamaram-me muito a atenção. Na minha inexperiência e para minha segurança como notária, solicitei ao seu advogado que me trouxesse um laudo médico para que esta fosse qualificada como capaz, com o intuito de prevenir que a qualquer momento alguém questionasse o ato e quisesse anulá-lo.
O primeiro artigo do Código Civil brasileiro atribui a todas as pessoas a capacidade de direitos e deveres na ordem civil, declarando com isso que no direito brasileiro inexiste incapacidade de direito e que todos ao nascerem tornam-se capazes de adquirir direitos ou gozar destes. Já o artigo 4º do Código Civil distingue como relativamente incapaz:
I - os maiores de 16 e menores de 18 anos;
II - os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido;
III - os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; e
IV - os pródigos.
Valho-me da conclusão seguinte: Se a capacidade é regra plena e a incapacidade cessa quando inexistem ou desaparecem as causas que a determinaram, o indivíduo portador de Síndrome de Down e maior de 18 anos é considerado capaz, pois presume-se que o mesmo tenha atingido um desenvolvimento intelectual e econômico plausível, ainda que seja portador de uma síndrome, desde que tenha pleno gozo de suas faculdades mentais, ainda que intelectualmente lento. Este não precisaria provar sua capacidade e sua incapacidade dependeria de interdição.
Quando nós, tabeliães, notamos a ausência de discernimento ou incapacidade mental para a realização do ato, negamos a lavratura do instrumento. E se ao nascer o indivíduo torna-se apto a adquirir direitos e deveres na ordem civil, recebendo a chamada personalidade jurídica, teremos como Notários que salvaguardar esses direitos, observando apenas alguns casos, que devido a um estado precário de saúde ou deficiência nítida em seu desenvolvimento, como acima relato, são considerados incapazes para realizar por conta própria os atos da vida civil, recebendo do ordenamento jurídico proteção, a fim de evitar danos a seu patrimônio e demais direitos, bem como a sua dignidade.
Na classe em que se enquadram os surdos-mudos e excepcionais, também estão alojados os indivíduos com Síndrome de Down, que sujeitos a tutela e curatela podem ser assistidos em seus atos da vida jurídica, e quando condicionados entre os relativamente incapazes, seus negócios e atos jurídicos praticados sem a presença ou aquiescência do “representante legal” são passíveis de anulação. Ao meu entender, a capacidade civil determinada pela legislação às pessoas denominadas “excepcionais” não é satisfatória, tendo em vista que desrespeita sua autodeterminação ao considerar a presunção estabelecida que este seja incapaz de gerenciar seus bens, todavia não sendo incapaz para tomar decisões como votar, casar-se ou ter filhos.
A maior diferença entre os indivíduos incapazes e os relativamente incapazes é que os primeiros não podem exercer diretamente os atos da vida civil, devendo ser representados, e os relativamente incapazes podem exercer alguns atos na vida civil, desde que sejam assistidos, pois correm o risco de que seus atos sejam anulados. Acredito que este tema deveria ser abordado com maior clareza entre os legisladores e juristas brasileiros, a fim de incluir pessoas com necessidades especiais na sociedade, identificando suas deficiências e capacidades e criando uma legislação mais condizente com a realidade destes indivíduos, de forma a extinguir o preconceito.
*Mary Jane Lessa é vice-presidente do Colégio Notarial do Brasil - Seção Bahia (CNB/BA) e Tabeliã de Notas e Protesto do Ofício de Amargosa, Bahia.
Extraído de Colégio Notarial do Brasil