Artigo - É inconstitucional a distinção entre cônjuge e companheiro para fins sucessórios - Por Walsir Edson Rodrigues Júnior

Artigo - É inconstitucional a distinção entre cônjuge e companheiro para fins sucessórios - Por Walsir Edson Rodrigues Júnior

Publicado em: 02/05/2017

Encontra-se suspenso no Supremo Tribunal Federal o julgamento do Recurso Extraordinário nº 878.694/MG, no qual se discute a constitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil, que conferiu ao companheiro direitos sucessórios distintos daqueles outorgados ao cônjuge sobrevivente. Até o momento, 7 ministros já votaram pela inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil (Luís Roberto Barroso, Edson Fachin, Teori Zavascki, Rosa Weber, Luiz Fux, Celso de Mello e Cármen Lúcia) e um ministro votou pela constitucionalidade da referida norma (Dias Toffoli). No dia 30/03/17, o pedido de vista do ministro Marco Aurélio suspendeu novamente o julgamento do Recurso Extraordinário nº 878.694/MG.

O cerne da questão é saber se é legítimo o tratamento desigual entre cônjuges e companheiros para fins sucessórios.

No Brasil, foi a partir da Constituição da República de 1988 que, expressamente, para além do casamento, foram reconhecidas como entidades familiares duas formações outrora ignoradas: a união estável e a família monoparental. Contudo, não se pode dizer que o ordenamento somente destina tutela a tais entidades familiares. O que o sistema jurídico – instaurado pela Carta Magna de 1988 – quer proteger, no que diz respeito à família, é a comunhão afetiva que promove a formação pessoal de seus componentes, seja sob qual forma for que esta se apresente e de que origem for.

Contudo, o fato de um relacionamento afetivo enquadrar-se no gênero família não significa dizer que irá receber o mesmo tratamento dispensado às várias espécies existentes, pois cada família possui suas peculiaridades e, por isso, a necessidade de regras próprias.

Evidentemente, diante da pluralidade de entidades familiares geradoras de efeitos jurídicos diversos, duas premissas devem ser assentadas: uma premissa é a de que não há hierarquia entre tais entidades, visto que todas servem de recurso para o livre desenvolvimento da personalidade de seus membros igualmente dignos; outra é de que o sujeito possui a liberdade de escolha entre formar ou não uma família e, mais do que isso, de definir qual o tipo de modelo familiar irá adotar.

O casamento é a única entidade familiar que depende da participação prévia do Estado – por meio do processo de habilitação e da celebração – para a sua constituição, sob pena de inexistência.

Todas as outras espécies de família – tais como, a união estável e a família monoparental – exigem do ordenamento jurídico mero reconhecimento tão logo se apresentem instituídas, de fato. A interferência estatal, quando necessária, dá-se posteriormente e para simplesmente verificar a existência dos elementos caracterizadores da entidade familiar.

A despeito do atual reconhecimento e disciplinamento legal que recebe, a união estável ainda é fonte fértil de dúvidas. E isso acontece basicamente porque, internamente – na relação afetiva estabelecida entre os companheiros –, é muito semelhante ao casamento. Contudo, externamente – em relação a terceiros –, os efeitos jurídicos podem ser diferentes.

Percebe-se, então, uma importante diferença entre a união estável e o casamento quanto à forma de instituição. Por ser uma união formal, o casamento, uma vez realizado, por si só, institui a família. Já a união estável – união informal – necessita preencher alguns requisitos substanciais estabelecidos em lei (art. 1723 do CC) tendo, assim, existência precedente ao seu reconhecimento jurídico como entidade familiar.

Diante desse fato é possível identificar alguns efeitos jurídicos distintos e legítimos entre cônjuges e companheiros. Como exemplos podem ser citadas a presunção legal de paternidade e a vênia conjugal para a prática de certos atos da vida civil, presentes no casamento e ausentes na união estável.

Os filhos concebidos na constância do casamento presumem-se do marido (art. 1.597 do CC). Algumas situações em que se aplica a presunção de paternidade pressupõem a prévia certificação jurídica da existência ou do término da relação conjugal, e isso só está presente, em princípio, no casamento. Apenas este compreende uma prova pré-constituída, qual seja, a certidão de casamento. Ao revés, a união estável representa uma situação fática que escapa de qualquer controle jurídico prévio, o que inviabiliza a aplicação das hipóteses de presunção de paternidade descritas nos incisos I e II do art. 1.597 do CC.[1]

Outro efeito distinto entre casamento e união estável diz respeito à necessidade de vênia conjugal para a prática dos atos elencados no art. 1.647 do Código Civil. No casamento, alguns atos, a depender do regime de bens adotado, só podem ser praticados, sob pena de anulação, com a autorização do outro cônjuge. Diferentemente, na união estável, independentemente do regime de bens escolhido, crê-se que não se pode impor aos companheiros a exigibilidade de outorga para a prática de quaisquer dos atos descritos no art. 1.647 do Código Civil. É assim porque, como, geralmente, a união estável não compreende formalização constitutiva e consequente publicidade jurídica com efeitos erga omnes, não é razoável exigir que terceiros conheçam sua existência e a respectiva necessidade de providenciar a autorização do consorte, sob pena de invalidade do negócio jurídico.

Evidencia-se que as diferenças entre casamento e união estável até aqui estudadas são legítimas, pois estão diretamente ligadas à substancial diferença entre as duas entidades familiares, qual seja: a prova pré-constituída do ato jurídico presente no casamento e inexistente na união estável. Além disso, tais diferenças são externas, ou seja, em relação a terceiros.

Contudo, internamente, as duas entidades familiares não se diferenciam, pois a qualidade do vínculo afetivo que proporciona o livre desenvolvimento da personalidade dos membros dessas famílias é o mesmo. Além disso, o princípio da solidariedade familiar está presente nas duas entidades familiares. Assim, tendo em vista essas características internas comuns, diversos direitos e deveres oriundos do casamento e da união estável são estabelecidos de maneira idêntica pelo ordenamento jurídico. Exemplificativamente, citam-se os direitos previdenciários e o direito a alimentos entre cônjuges e companheiros. Aqui, a solenidade que existe no ato constitutivo do casamento e a informalidade na constituição da união estável não inviabilizam a estipulação de regras igualitárias para os membros das duas entidades familiares.

E as regras sucessórias causa mortis? Até o Código Civil de 2002 o tratamento dispensado entre os cônjuges e os companheiros para fins sucessórios era muito similar. Contudo, a partir do novo Código Civil, foram estabelecidas regras sucessórias completamente diferentes para os cônjuges e os companheiros.

Para o companheiro sobrevivente o texto legal dispõe, in verbis:

Art. 1790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:

I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;

II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á metade do que couber a cada um daqueles;

III - se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;

IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.

Já o cônjuge supérstite, segundo a ordem de vocação hereditária disciplinada no atual Código Civil, foi contemplado como herdeiro, nos seguintes termos:

Art. 1.829 - A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:

I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;

II - aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;

III - ao cônjuge sobrevivente;

IV - aos colaterais.

Art. 1.832 - Em concorrência com os descendentes (artigo 1.829, inciso I) caberá ao cônjuge quinhão igual ao dos que sucederem por cabeça, não podendo a sua quota ser inferior à quarta parte da herança, se for ascendente dos herdeiros com quem concorrer.

Art. 1.837 - Concorrendo com ascendente em primeiro grau, ao cônjuge tocará um terço da herança; caber-lhe-á a metade desta se houver um só ascendente, ou se maior for aquele grau.

Art. 1.838 - Em falta de descendentes e ascendentes, será deferida a sucessão por inteiro ao cônjuge sobrevivente.

Art. 1.845. São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge.

Do confronto dos dispositivos legais supramencionados, resta claro que, na falta de descendentes e ascendentes do de cujus, o companheiro sobrevivente poderá receber apenas um terço da herança que couber aos colaterais. Já o cônjuge supérstite, em hipótese alguma terá que dividir a herança com os colaterais do falecido.

Várias outras diferenças entre a sucessão do cônjuge e a sucessão do companheiro podem ser apontadas, tais como: a) A possibilidade de concorrência sucessória entre o cônjuge sobrevivente e os descendentes do autor da herança a depender do regime de bens do casamento. Já a concorrência do companheiro sobrevivente com os descendentes do autor da herança não depende do regime de bens, mas da forma como o patrimônio que está sendo inventariado foi adquirido; b) O cônjuge sobrevivente foi promovido ao status de herdeiro necessário, diferentemente do companheiro sobrevivente, que é considerado herdeiro facultativo.

Para os defensores da legitimidade do tratamento sucessório diferenciado entre cônjuges e companheiros, é a própria Constituição que autoriza a distinção ao proclamar que para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento (art. 226, §3º, CR/88). De sorte que não haveria de estabelecer facilidade para conversão de um instituto em outro, se o Constituinte não os considerasse figuras jurídicas diferentes.

Não se nega que casamento e união estável são entidades familiares distintas. Contudo, conforme já esclarecido, a distinção decorre exclusivamente da forma de constituição: uma formal e a outra informal.

É claro que a informalidade presente na união estável acaba gerando mais insegurança em relação à certificação do relacionamento afetivo, o início dos efeitos patrimoniais e sua eficácia em relação a terceiros, conforme já demonstrado. Tem-se, então, que a facilitação da conversão da união estável em casamento determinada pela Constituição deve ser entendida apenas como uma faculdade aos companheiros que pretendem dar mais segurança jurídica à relação afetiva, apenas isso.[2]

Portanto, a possibilidade de conversão dos institutos – que é mera faculdade conferida aos próprios companheiros – não pode servir de justificativa para eventuais tratamentos discriminatórios ilegítimos entre cônjuges e companheiros para fins sucessórios, pois vulnera o princípio constitucional da igualdade e a sua premissa mais aceita que não tem nada de moderna: tratar os iguais de maneira igual, e os desiguais na medida de sua desigualdade.

Reitera-se, ainda, que o sujeito possui a liberdade de escolha entre formar ou não uma família e, mais do que isso, de definir qual o tipo de modelo familiar irá adotar. Na hipótese de tratamento desigual entre cônjuges e companheiros para fins sucessórios, a liberdade na escolha do tipo de família estará comprometida, conforme constatou o ministro Roberto Barroso:

[...] não há dúvida de que a opção de constituir uma família, bem como de adotar uma determinada forma de constituição familiar é uma das mais relevantes decisões existenciais. Trata-se de uma questão que toca a intimidade de cada indivíduo, de sua vontade de seguir (ou não) tradições, crenças e sonhos, e de viver sua união segundo a sua própria concepção de vida boa. Porém, quando o Código Civil cria regimes sucessórios diversos para os casais casados e para os que vivem em união estável, restringe-se inequivocamente a autonomia de optar por um ou outro regime. Considerando-se que, na quase totalidade dos casos, o companheiro terá menos direitos sucessórios em relação ao cônjuge, o ordenamento jurídico impõe um ônus maior às famílias em união estável. Assim, acaba-se induzindo quem deseja viver em união estável a adotar o modelo do casamento, por receio de que seus parceiros não venham a fazer jus ao regime sucessório devido.[3]

Além disso, qualquer tratamento sucessório diferenciado entre cônjuges e companheiros contraria as diretrizes da sucessão legítima. A teoria mais conhecida e aceita sobre o fundamento principiológico da sucessão legítima e da ordem de vocação hereditária, conferida pela Lei Civil, é a que lhes atribui a vontade presumida do falecido, o qual, se a tivesse manifestado, razoavelmente disporia de seus bens a partir daquela ordem, porquanto graduaria a sucessão da mesma forma que gradua suas afeições. [4]

Portanto, é correto afirmar que a ordem de vocação hereditária visa a preservar uma espécie de sucessão por afeição e por solidariedade familiar. E, definitivamente, o vínculo afetivo existente entre cônjuges e entre companheiros não serve para justificar um tratamento desigual entre eles na ordem de vocação hereditária, pois a afeição é a mesma.

Com efeito, uma ordem de vocação hereditária para o companheiro diferenciada daquela prevista para o cônjuge atenta contra a Constituição da República de 1988, especialmente contra o art. 226 – que concedeu a mesma especial proteção estatal a todas as famílias lá previstas –, e o caput do art. 5º -, porquanto não admite tratamento desigual à união estável exatamente no aspecto em que se iguala ao casamento, ou seja, no vínculo afetivo decorrente da relação familiar
.

[1] Art. 1.597 do Código Civil: “Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal; II - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento; [...].

[2] TEPEDINO, Gustavo. A disciplina civil-constitucional das relações familiares. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 358.

[3] Disponível em: https://s.conjur.com.br/dl/sucessao-companheiro-voto-barroso.pdf Acesso em: 16 maio 2017.

[4] MAXIMILIANO, Carlos. Direito das Sucessões. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1937. p. 153-154.

Walsir Edson Rodrigues Júnior é advogado, doutor e mestre em Direito pela PUC Minas, professor de Direito Civil na PUC Minas e na Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios.

Fonte: Conjur
Extraído de Recivil

Notícias

Inseminação caseira: Veja impacto jurídico da prática não regulada no país

Reprodução assistida Inseminação caseira: Veja impacto jurídico da prática não regulada no país Recente decisão do STJ, reconhecendo dupla maternidade em caso de inseminação caseira, denota a urgência do tema. Da Redação segunda-feira, 4 de novembro de 2024 Atualizado às 09:56 Registrar o...

Câmara derruba taxação de transmissão por herança de previdência privada

Derrota dos estados Câmara derruba taxação de transmissão por herança de previdência privada 30 de outubro de 2024, 21h22 A rejeição do Congresso Nacional em dispor no texto da lei sobre a incidência do ITCMD nos planos de VGBL é um bom indicativo de que a pretensão dos estados não deve ser...