Artigo - Testamento vital - Júlia Bald
Artigo - Testamento vital - Júlia Bald
O testamento vital merece encontrar espaço no ordenamento brasileiro. Urge reconhecer sua validade por meio de lei, o que consagraria o direito à autodeterminação da pessoa.
RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo analisar o testamento vital. Para elaboração do trabalho utiliza-se o método categórico-dedutivo, com enfoque hermenêutico, no qual são revisadas bibliografias especializadas em Direito Notarial e Registral e em Direito Civil. Primeiramente, são feitas considerações gerais acerca das características e das diversas espécies de testamento. Posteriormente, analisa-se o testamento vital dentro do ordenamento jurídico brasileiro e a importância da atuação do notário na lavratura deste instrumento. Ao final, conclui-se que o Brasil necessita reconhecer a validade deste negócio jurídico por meio de lei, uma vez que resguarda os princípios da dignidade da pessoa humana, da autonomia privada e da liberdade individual.
1. INTRODUÇÃO
O aumento da expectativa de vida na sociedade implicou diversas consequências antropológicas, sociológicas, religiosas, jurídicas e morais. O prolongamento da vida não se deu apenas em face da melhoria das condições sanitárias, alimentares e educacionais. A vida também se prolonga por eficientes tratamentos médico-hospitalares. E é nesse ponto que se radica o estudo do chamado “testamento vital”, também conhecido por expressões como “testamento biológico” ou “diretivas antecipadas de vontade”, a respeito do qual atualmente há diminuta literatura jurídica.
O testamento vital surgiu da necessidade de se regulamentar a questão da postura do médico e da autonomia dos pacientes em estado terminal. Trata-se de um documento no qual a pessoa estabelece sobre que tipo de tratamento ou de não tratamento deseja para o caso de se encontrar doente em estado terminal e sem condições de manifestar a sua vontade.
Todas as pessoas capazes, em pleno gozo de suas faculdades mentais, maiores de 18 anos ou emancipadas, estejam doentes ou não, poderão comunicar diretamente ao médico, fazer uma escritura pública declaratória em Tabelionato ou nomear um representante para expressar suas diretivas antecipadas de vontade. Nesse ínterim, os notários, enquanto depositários da fé pública exercem uma função que requer estabilidade das relações, a fim de que alcancem evidência legal.
Nesse sentido, o presente trabalho será estruturado e desenvolvido analisando-se o testamento vital e sua relação com a atuação do notário, bem como serão feitas considerações acerca dos testamentos, observadas suas noções gerais, características e espécies. Nesse prisma, veremos a importância da atuação do notário na lavratura da escritura de testamento vital, uma vez que garantidor de publicidade, autenticidade, segurança e eficácia. Para tanto, serão revistas bibliografias em Direito Notarial e em Direito Civil, bem como serão cotejados artigos científicos sobre o tema.
2. TESTAMENTO VITAL
2.1 TESTAMENTO: NOÇÕES GERAIS, CARACTERÍSTICAS E ESPÉCIES
O Código Civil de 1916, inspirado no Código Civil francês, definiu em seu artigo 1.626 o conceito de testamento, como “o ato revogável pelo qual alguém, de conformidade com a lei, dispõe, no todo ou em parte, do seu patrimônio, para depois de sua morte”. Entretanto, o aludido dispositivo foi muito criticado por ter restringido o conteúdo do testamento a uma manifestação de vontade com o único escopo de dispor sobre o patrimônio do testador, quando o testamento também pode conter disposições de natureza não econômica como, por exemplo, o reconhecimento de filiação.
Assim, diferentemente, o Código Civil de 2002 não se arriscou em uma definição de testamento, limitando-se a afirmar no artigo 1.857, caput, que “toda pessoa capaz pode dispor, por testamento, da totalidade dos seus bens, ou de parte deles, para depois de sua morte”. Coube então à doutrina conceituar o que é testamento. Nesse sentido, Zeno Veloso dispõe que testamento é o “negócio jurídico pelo qual uma pessoa dispõe no todo ou em parte de seu patrimônio ou faz outras determinações de última vontade”. [1]
Testamento, portanto, é ato de última vontade de certa pessoa, em que dispõe sobre a totalidade ou parte de seus bens, para depois da morte. Diante de suas características essenciais, pode-se dizer que o testamento é negócio jurídico unilateral, personalíssimo, indelegável, gratuito, revogável, causa mortis, formal e solene.
Negócio jurídico unilateral é aquele para o qual é suficiente e necessária uma única vontade para a produção de efeitos jurídicos. Nessa modalidade, a regulamentação dos efeitos ocorre para apenas uma das partes.[2] Isto é, a vontade livre e soberana do testador é suficiente para o aperfeiçoamento do ato, não havendo necessidade de aceitação ou anuência de quem quer que seja. Trata-se, portanto, de manifestação de vontade não receptícia.[3]
O testamento é personalíssimo, porque somente pode emanar da vontade do testador, de forma individual, exclusiva e direta. O Código Civil proíbe expressamente o “testamento conjuntivo, mancomunado, coletivo ou de mão comum”,[4] que é aquele em que duas ou mais pessoas fazem disposições de última vontade em um só instrumento. Proíbe-se este tipo de testamento, seja ele simultâneo (disposição conjunta em favor de terceira pessoa), recíproco (testamento que institui benefícios mútuos) ou correspectivo (disposições em retribuição de outras correspondentes).
Ademais, por se tratar de ato personalíssimo, o testamento também é indelegável, uma vez que não se admite a sua manifestação através de procuradores ou representantes legais. Assim, a lei não admite que a sua elaboração seja deixada ao arbítrio de terceiro. Logo, não se admite o testamento feito por procuração.
Igualmente, é o testamento negócio jurídico gratuito, pois induz liberalidade. Não se exige qualquer contraprestação por parte dos contemplados. Não se admite que o testador, em troca das disposições, venha exigir qualquer contraprestação. Mas ele pode impor condições, para que o contemplado venha receber o legado ou a herança. Isto quer dizer que o testador não pode exigir para si qualquer vantagem.[5] Nesse sentido, o artigo 1.792 do Código Civil[6] dispõe que o herdeiro não responde por passivo maior do que o ativo deixado pelo de cujus, vale dizer, nosso ordenamento jurídico não admite a chamada “damnosa hereditas” (a herança danosa).
Outra característica do testamento é a sua revogabilidade. Não só o testamento, como também suas disposições ou verbas testamentárias podem ser revogados pelo testador, mediante a feitura de outro ato de última vontade. A revogação pode ser expressa ou tácita, integral ou parcial, bastante que a nova disposição seja contrária à anterior. Ressalta-se que esta característica possui uma exceção: não é revogado por novo testamento o conteúdo atípico do testamento, isto é, aquele que não é propriamente mortis causa como, por exemplo, o reconhecimento de filiação.
Outrossim, o testamento é classificado como um negócio jurídico mortis causa, tendo em vista que regula o patrimônio de uma pessoa após sua morte. O testamento é puramente um ato de disposição mortis causa, isto é, somente terá eficácia e será cumprido com a morte do testador. Portanto, o falecimento do testador é condição de eficácia e validade. Verificado este fato, torna-se irrevogável e definitivo.
Finalmente, o testamento caracteriza-se como negócio formal e solene, uma vez que a validade do testamento está condicionada aos requisitos previstos minuciosamente na lei. É essencial que se cumpra as formalidades e solenidades prescritas para cada forma, sob pena de nulidade. A formalidade exige uma forma prescrita em lei, trata-se da qualidade de ser escrito. Diferentemente, a solenidade refere-se à instrumentalização do testamento, o qual pode ser público ou particular.
Ademais, cumpre ainda referir que enquanto vivo, o testador tem inteira disponibilidade, podendo modificar ou revogar seu testamento. Da mesma forma, no testamento o testador pode dispor de todos ou parte de seus bens, estabelecer cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade dos bens deixados, bem como pode enunciar disposições de natureza não patrimonial, por exemplo, o reconhecimento de filho, a deserdação de herdeiro necessário, doação de órgão ou ainda confissão a respeito de qualquer fato.[7]
De acordo com o Código Civil de 2002 existem três formas de testamentos ordinários e três formas de testamentos especiais. Todas as espécies de testamento são caracterizadas pela exigência do cumprimento de várias formalidades, que se destinam a dar maior acuidade e segurança à manifestação de última vontade. A pessoa que deseja testar, deve necessariamente escolher um dos tipos de testamento criados pelo legislador, não podendo inventar um novo tipo, mediante combinação dos previstos em lei, uma vez que o rol é taxativo.
Os testamentos ordinários constituem os tipos comuns, normais, que qualquer pessoa capaz pode utilizar. Tais espécies podem ser livremente escolhidas e outorgadas por qualquer pessoa capaz e que tenha a habilitação exigida para a respectiva forma. São testamentos ordinários: o testamento público, o testamento cerrado e o testamento particular.
Testamento público é aquele lavrado por tabelião de notas, em seu livro, de acordo com as declarações feitas pelo testador de viva voz e em língua nacional, perante o tabelião e duas testemunhas a um só tempo. A vontade do testador deve ser externada ao notário sob a forma de declaração. Por essa razão, o mudo não pode testar sob esta espécie, uma vez que não cumprirá com os requisitos da lei. Nesse sentido, o jurista Zeno Veloso afirma que vigora o princípio da infungibilidade das formas testamentárias, não se podendo utilizar as solenidades prescritas para uma em outra.[8] Outrossim, cumpre ressaltar que a pessoa cega e o analfabeto somente poderão testar por meio de testamento público, tendo em vista que as demais espécies de testamento exigem que a pessoa saiba ou possa ler.
O testamento cerrado é o escrito pelo testador, ou por outra pessoa a seu rogo, que será válido após ser aprovado pelo tabelião ou seu substituto legal. É também chamado de secreto ou místico, pois seu conteúdo somente é conhecido pelo próprio testador e, eventualmente, porque quem o escreveu a pedido dele. Junto do testamento público, o cerrado é uma espécie de testamento notarial, uma vez que é indispensável, para sua validade, a intervenção do notário. O testamento cerrado é um ato complexo, uma vez que composto de duas partes: a cédula testamentária e o auto de aprovação. A cédula testamentária é a o documento que contém as disposições de última vontade, escritas e assinadas pelo próprio testador, ou por outra pessoa a seu rogo. O auto de aprovação é o documento redigido pelo tabelião de notas ou seu substituto legal. O notário faz constar que o testador lhe entregou o testamento, acompanhado de duas testemunhas, para que ele o aprove. [9]
O testamento particular, também chamado de hológrafo, privado, aberto ou de próprio punho, é escrito e assinado pelo testador e por pelo menos três testemunhas, que também o assinam. Diferentemente do testamento cerrado, as testemunhas conhecem totalmente o conteúdo da cédula e suas assinaturas constituem um comprovante de que estiveram presentes à feitura do testamento. Pode ser escrito em língua nacional ou estrangeira, desde que o testador e as testemunhas a entendam e compreendam.[10] Esta forma de testar depende da confirmação das testemunhas quando da abertura da sucessão, o que pode não ocorrer, eis que as testemunhas poderão faltar. Por esta razão, é a forma ordinária menos segura de testar.
Testamentos especiais, também chamados de extraordinários ou excepcionais, são aqueles feitos em circunstâncias extraordinárias e que excluem ou diminuem certas exigências e formalidades das testemunhas ordinárias. Tais testamentos são previstos para acudir quem pretende fazer suas disposições de última vontade quando se encontra em situação anormal, dentro da qual não pode ou é extremamente difícil a utilização de uma forma ordinária de testamentificação. Uma peculiaridade dos testamentos especiais é que eles estão sujeitos a um prazo de caducidade, isto é, passado algum tempo perdem a sua eficácia. As três formas de testamentos especiais são: testamento marítimo, testamento aeronáutico e testamento militar.
O testamento marítimo caracteriza-se pelo fato de o testador estar em viagem a bordo de navio nacional, de guerra ou mercante e surgir alguma situação de risco de vida ou impossibilidade de desembarque em algum porto onde possa testar de forma ordinária. Nesse caso, poderá se testar perante o comandante do navio ou escrivão de bordo, na presença de duas testemunhas, sob a forma que corresponda ao testamento público ou cerrado. Se o testador não falecer durante a viagem, nem nos noventa dias subsequentes ao seu desembarque em terra, onde possa fazer, na forma ordinária, outro testamento, caducará o testamento marítimo e não terá mais eficácia.
O testamento aeronáutico, por sua vez, ocorre quando o testador estiver em viagem a bordo de aeronave militar ou comercial, devendo testar para pessoa designada pelo comandante. Esta espécie de testamento só será considerada válida se observadas as mesmas regras previstas para o testamento marítimo.
O testamento militar é a disposição de última vontade feita pelos militares e demais pessoas a serviço das forças armadas em campanha, que estejam participando de operações de guerra, dentro ou fora do país. Caduca o testamento militar da mesma forma que o testamento marítimo e aeronáutico. Outrossim, destaca-se que o testamento militar pode se revestir da forma nuncupativa. O testamento nuncupativo militar foi criado para os que se acham em campanha e sem tempo nem mesmo para fazer o testamento militar.[11] É o caso do saldado ferido gravemente em combate e que poderá testar verbalmente a duas testemunhas a sua última vontade, consoante previsão do artigo 1.896, caput, do Código Civil. [12]
Por fim, algumas considerações a respeito do codicilo. A palavra codicilo é de origem latina, significando pequeno escrito. Apesar de se tratar de ato de disposição de última vontade, como o testamento, não se configura como tal. O conteúdo do codicilo é muito limitado, uma vez que contém disposições sobre seu enterro, acerca de bens de pequeno valor, bem como nomeação ou substituição de testamenteiros. Para sua validade, não se exige maiores formalidades, sendo até mesmo dispensada a presença de testemunhas.
2.2 TESTAMENTO VITAL E A ATUAÇÃO DO NOTÁRIO
Diante das considerações feitas no Capítulo anterior, ressaltou-se que a enumeração dos testamentos é taxativa, numerus clausus. Por isso, a expressão “testamento vital” é imprópria. Trata-se de expressão equivocada, a despeito de sua inegável popularização. É errôneo considerar-se como testamento, pois o testamento em geral é negócio jurídico destinado à produção de efeitos post mortem, enquanto o testamento vital é dirigido à eficácia jurídica antes da morte do interessado. Por isso, a doutrina sugere que a melhor denominação para tal documento seria “declaração vital” ou “diretiva antecipada de vontade”.[13]
Nesse sentido, Ernesto Lippmann, especialista na matéria, explica que o testamento vital, difere do testamento civil, uma vez que:
(...) visa ser eficaz em vida, indicando como você deseja ser tratado — do ponto de vista médico — se estiver em uma situação de doença grave e inconsciente, na medida em que se constitui em uma declaração escrita da vontade de um paciente quanto aos tratamentos aos quais ele não deseja ser submetido caso esteja impossibilitado de se manifestar. (LIPPMANN, 2013, p. 17).
Testamento vital é uma declaração de vontade emitida por pessoa natural capaz, em pleno gozo de suas faculdades mentais, cujo conteúdo é uma autorização ou uma restrição à submissão do declarante a certos procedimentos médico-terapêuticos, quando estiver impedido de manifestar sua vontade, em razão de determinada doença. Trata-se de “um documento em que a pessoa determina, de forma escrita, que tipo de tratamento ou não tratamento deseja para a ocasião em que se encontrar doente, em estado incurável ou terminal, e incapaz de manifestar sua vontade” (BORGES, 2007, p. 240).
Diversos países já legalizaram o instituto do testamento vital, tais como: Portugal, Espanha, Itália, Estados Unidos da América e Argentina. Em Portugal entrou em vigor, em agosto de 2012, lei federal que autoriza o registro das “Diretivas Antecipadas de Vontade”. Na Espanha este documento é chamado de “Vontades Antecipadas” e na Itália de “Testamento Biológico”. Já na Argentina, a legislação sobre este tema possui quatro anos.
Contudo, historicamente o testamento vital nasceu nos Estados Unidos, no ano de 1967. Criado por Luis Kutner, um advogado de Chicago, que redigiu um documento onde registrava expressamente o desejo de um cidadão de recursar tratamento, caso sobreviesse enfermidade terminal. Assim, surgiu o notório termo “living will”, o qual atualmente possui valor legal e é conhecido pelos cidadãos norte-americanos.[14]
Não há norma jurídica no Brasil que regulamente a figura do testamento vital, embora não exista razão que impeça a discussão de sua validade. Assim, hodiernamente é crescente o movimento doutrinário no sentido de apoiar sua criação dentro do ordenamento jurídico brasileiro. Dessa forma, na V Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, realizada em maio de 2012, foi aprovado o Enunciado 528, o qual dispõe que:
528 – Arts. 1.729, parágrafo único, e 1.857: É válida a declaração de vontade expressa em documento autêntico, também chamado “testamento vital”, em que a pessoa estabelece disposições sobre o tipo de tratamento de saúde, ou não tratamento, que deseja no caso de se encontrar sem condições de manifestar a sua vontade.
No mesmo ano de 2012, no dia 31 de agosto, foi publicada no Diário Oficial da União a Resolução 1995/2012 do Conselho Federal de Medicina. A Resolução estabelece critérios para que qualquer indivíduo, maior de idade e plenamente consciente, tenha possibilidade de definir junto ao seu médico os limites terapêuticos a serem adotados em uma fase terminal, por meio do registro expresso do paciente num documento denominado “Diretiva Antecipada de Vontade”.
Ressalta-se que o cuidado com o paciente deve perdurar até o momento da morte, com ênfase no controle dos sintomas e na resolução de pendências. Ou seja, o foco do testamento vital é o conforto do paciente. Trata-se de uma medida que proporciona a manutenção da autonomia, ao passo que respeita a vontade do paciente. Antes dessa Resolução, os médicos se sentiam compelidos a tomar medidas de tratamento nas quais, muitas vezes, nem mesmo eles acreditavam.
Contudo, há quem não concorde com a Resolução 1995/2012. No Estado de Goiás, o Ministério Público Federal propôs uma Ação Civil Pública em face do Conselho Federal de Medicina, visando a suspensão da aplicação da aludida Resolução. Em março de 2013 foi proferida decisão julgando pelo indeferimento do pedido, entendendo-se que a Resolução 1995/2012 do Conselho Federal de Medicina é constitucional e se coaduna com o princípio da dignidade da pessoa humana. O magistrado entendeu que a Diretiva Antecipada de Vontade assegura aos pacientes em estado terminal o recebimento de cuidados paliativos, sem o submeter, contra sua vontade, a tratamentos que prolonguem o seu sofrimento e não mais tragam qualquer benefício. [15]
Como exposto no fundamento da decisão acima, o atual ordenamento jurídico brasileiro tem dado grande relevância ao princípio da dignidade da pessoa humana, constitucionalmente previsto no artigo 1°, inciso III, da Constituição Federal.[16] A instituição da dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil significa que o ser humano e seus valores existenciais são os valores prioritários do nosso sistema democrático. A partir da consagração da dignidade constata-se que se aparentemente incidir um conflito entre direitos fundamentais, deverá prevalecer aquele que melhor espelhe a dignidade humana, segundo o critério da proporcionalidade. A própria vida, nesse caso, não se justifica por si mesma, se afastada do padrão de dignidade.
Destarte, o substrato jurídico da dignidade humana pode ser desdobrado nos princípios da igualdade, da liberdade, da integridade e da solidariedade. É de se ressaltar que o valor da dignidade humana se aplica às situações patrimoniais e às existenciais, podendo-se afirmar que nestas, a liberdade assume o papel de autodeterminação da vida privada.[17]
O princípio da liberdade individual se consubstancia, cada vez mais, numa perspectiva de privacidade, de intimidade, de exercício da vida privada. Liberdade hoje significa poder realizar, sem interferências de qualquer gênero, as próprias escolhas individuais, exercendo-as como melhor convier.[18] Para o exercício dessa liberdade, o testamento vital se mostra como o instrumento adequado que serve à autonomia privada do paciente terminal, em consonância com os princípios adotados pela Constituição Federal de 1988.[19] Nesse sentido, Flávio Tartuce destaca:
O testamento vital ou biológico, ao tutelar a manifestação da autonomia privada, nos termos acima, funciona como um instrumento voltado para a proteção direta da dignidade do paciente terminal e indireta da dignidade de seus familiares, de vez que estes sofrem os males e as dores pelos quais passa seu ente querido. (TARTUCE, 2011, p. 345).
Dessa forma, se o indivíduo expressamente documentar que não considera digno um tratamento, mantê-lo vivo seria fazer prevalecer uma vida considerada indigna e contrariamente a sua liberdade e integridade. Trata-se, assim, de admitir uma nova concepção de autonomia privada com suporte na Carta Magna. Ressalta-se que os princípios da dignidade humana, da liberdade de crença, da integridade física e da autonomia da vontade devem estar presentes em todas as etapas da vida do indivíduo.
Nesse diapasão, Giovanni Ettore Nanni[20] sustenta o surgimento de uma nova espécie de capacidade negocial: a capacidade de consentir. Cuida-se da capacidade ligada ao desenvolvimento da personalidade e ao direito à autodeterminação, a qual tem por objeto específico o processo de tomada de decisões sobre os cuidados para com a saúde. Tal capacidade difere da capacidade negocial comumente conhecida, a qual está voltada para o direito patrimonial. A capacidade de consentir, segundo o jurista, rege as relações jurídicas existenciais e está intimamente relacionada ao direito à vida, à saúde e ao princípio da dignidade da pessoa humana. Destarte, observa-se que o testamento vital se consolida em um negócio jurídico unilateral extrapatrimonial, consubstanciado na capacidade de consentir.
De acordo com o Colégio Notarial do Brasil – Seção São Paulo, o testamento vital tornou-se comum depois da entrada em vigor do novo Código de Ética Médica, de abril de 2010, que deu mais poder para a vontade dos pacientes. Diversos Tabelionatos têm lavrado centenas de escrituras deste tipo.[21] Por se tratar de disposições de extrema importância, que em alguns casos podem ir contra a vontade de seus entes próximos, é crescente a quantidade de lavratura deste ato perante o tabelião de notas.
Como referido anteriormente, a expressão testamento vital é atécnica, razão pela qual os Tabelionatos de Notas têm optado por designar este instrumento de “Escritura Pública de Diretivas Antecipadas de Vontade”. Corroborando tal entendimento, para efeito de cobrança de emolumentos, o testamento vital é considerado como “escritura declaratória”, consoante disposição do próprio Colégio Notarial do Brasil – Seção São Paulo.[22]
Com a “Escritura Pública de Diretivas Antecipadas de Vontade”, o paciente terá a segurança de que a sua vontade será resguardada, uma vez que a atividade notarial é dotada de fé pública. Feita perante um tabelião de notas, a vontade do paciente será presumida como verdadeira e o documento permanecerá para sempre arquivado no cartório, diminuindo também o risco de extravio.
Os notários têm a função precípua de formalizar juridicamente a vontade das partes, intervindo nos atos e negócios jurídicos a que as partes devam ou queiram dar forma legal ou autenticidade, autorizando a redação ou redigindo os instrumentos adequados, conservando os originais e expedindo cópias fidedignas de seu conteúdo.[23] A atuação do notário é acometida de fé pública e tem por objetivo garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos. Assim, pode-se dizer que o notário age como acautelador dos direitos individuais das pessoas.
A jurista Juliana Follmer[24] afirma que a grande característica do notariado brasileiro, originário do tipo latino, é ser ele dotado de fé pública. Sustenta que a fé pública é necessária para o desenvolvimento da sociedade, tendo em vista a rapidez e a complexidade das relações jurídicas. Em razão da fé pública, os instrumentos notariais possuem presunção de veracidade até que se prove o contrário, ou seja, tais documentos possuem presunção juris tantum. A fé pública, portanto, garante às partes uma certeza de veracidade.
Em outras palavras, Walter Ceneviva também explica fé pública:
A fé pública: a) corresponde à especial confiança atribuída por lei ao que o delegado declare ou faça, no exercício da função, com presunção de verdade; b) afirma a eficácia do negócio jurídico ajustado com base no declarado ou praticado pelo registrador e pelo notário. (CENEVIVA, 2002, p. 30).
Outro princípio inerente à atividade notarial e de grande relevância prática é o da segurança, o qual promove o afastamento de risco, uma vez que decorre da certeza de eficácia quanto ao ato praticado. A aplicação deste princípio da segurança permite a aferição de boa-fé de quem pratica qualquer ato fundado nas informações recebidas através dos serviços notariais e de registro. Um terceiro princípio, o da publicidade, exige ampla divulgação dos atos praticados pelo notário e tem como objetivo atribuir segurança jurídica às relações. Já o princípio da autenticidade refere-se à qualidade do que é confirmado por ato de autoridade, criando presunção relativa de veracidade; significa a confirmação a existência e das circunstâncias que caracterizam o fato. Por fim, a observância do princípio da eficiência traduz-se na garantia de que o ato produzirá a devida consequência jurídica, estando apto a produzir os efeitos jurídicos que dele se espera.[25]
No que tange à lavratura da “Escritura Pública de Diretivas Antecipadas de Vontade”, nota-se que esta deve conter alguns elementos, tais como: fundamentação legal, o tratamento de saúde, a escolha e a exclusão de certos procedimentos diagnósticos e terapêuticos, a disposição sobre o próprio corpo, designação de um representante para estas diretivas e para outras de caráter ordinário, entre outros. É necessário que o indivíduo seja capaz e tenha mais de dezoito anos ou esteja assistido por seus pais, se contar com dezesseis anos. O testamento vital pode ser feito em qualquer momento da vida, desde que estejam com inteiro poder de suas faculdades mentais. [26]
Destaca-se, ainda, que não há necessidade de testemunhas para sua lavratura e, diferentemente, de outros países, o testamento vital não tem prazo de validade e eficácia, perdurando até que o paciente o revogue. Assim como as demais espécies de testamentos civis, o testamento vital é ato essencialmente revogável. Flávio Tartuce ainda cita como características deste instrumento a pessoalidade e a unilateralidade.[27]
Logo, a “Escritura Pública de Diretivas Antecipadas de Vontade”, conhecida como testamento vital, trata-se, em verdade, de uma escritura declaratória, em que o interessado manifesta, de forma antecipada e expressa, sua vontade quanto às diretrizes de um tratamento médico futuro, caso fique impossibilitado de manifestá-la, em virtude de acidente ou de doença grave. Esta hipótese de não tratamento se restringe àquela da prática de ortotanásia.
Importante salientar a diferença entre ortotanásia, eutanásia e distanásia. Eutanásia significa “boa morte”, isto é, a morte sem sofrimento. Trata-se da utilização de técnicas que permitem a ocorrência da morte, porém da forma menos dolorosa possível ao paciente, ou seja, é um comportamento ativo e intencional de abreviação da vida de um doente terminal, adotado por um profissional de saúde. Pelo Direito Penal a eutanásia é vista como hipótese de crime de homicídio.[28]
Diferentemente, a distanásia significa o prolongamento do processo de morte, por meio artificial, porém com sofrimento do paciente. Há, nesse caso, um prolongamento exagerado da morte que se mostra, na maioria das vezes, inútil. Trata-se, portanto, de medida que ser evitada, uma vez que distorce os objetivos da Medicina. Em oposição à distanásia, surge o conceito de ortotanásia.
O novo Código de Ética Médica permite aos médicos a ortotanásia. Etimologicamente, ortotanásia significa “morte correta”, ou seja, trata-se do não prolongamento artificial do processo de morte. Caracteriza-se pelo não emprego de técnicas terapêuticas inúteis no prolongamento da vida, o que deve ser decidido pelo profissional da Medicina. Cumpre ressaltar que o processo de ortotanásia é atípico perante o Código Penal e para procede-la o médico necessita da autorização inequívoca do paciente ou de seu representante legal. Esta autorização é dada por um documento: as Diretivas Antecipadas de Vontade, que se realizadas por instrumento público, em Tabelionato de Notas, oferecem maior segurança ao paciente e ao médico.
Portanto, frente aos grandes avanços na Medicina, principalmente com o desenvolvimento de procedimentos que visam prolongar a morte, discute-se acerca do direito do paciente em manifestar a sua vontade em relação a este tratamento em situações de incapacidade. Surgiu, assim, a possibilidade de se constituir um instrumento que conste o interesse ou não do indivíduo em se submeter a terapêuticas médicas caso futuramente estiver em estado de incapacidade. Nesse sentido, a “Escritura Pública de Diretivas Antecipadas de Vontade” mostra-se como o meio mais seguro e eficaz para a realização da vontade do paciente.
Júlia Schroeder Bald
Advogada
Data: 08/04/2015 - 15:48:04 Fonte: Revista Jus Navigandi - 03/2015
Extraído de Sinoreg/MG