Bebidas alcoólicas e a nova tipificação do artigo 243 do ECA
Bebidas alcoólicas e a nova tipificação do artigo 243 do ECA
Eudes Quintino de Oliveira Júnior e Antonelli Antonio Moreira Secanho
"É de bom alvitre ter em mente que a lei, por si só, apesar de seu comando coercitivo, não carrega o condão mágico para solucionar uma prática de muito arraigada."
domingo, 22 de março de 2015
No dia 17 de março de 2015, entrou em vigor a lei Federal 13.106, que altera o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), para tornar crime vender, fornecer, servir, ministrar ou entregar bebida alcoólica a criança ou a adolescente. Com a nova formatação, fica revogado o inciso I do art. 63 do decreto-lei 3.688, de 3 de outubro de 1941 - Lei das Contravenções Penais.
Com efeito, o novo artigo 243 do referido diploma legal passa a ter a seguinte redação:
Vender, fornecer, servir, ministrar ou entregar, ainda que gratuitamente, de qualquer forma, a criança ou a adolescente, bebida alcoólica ou, sem justa causa, outros produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica:
Pena - detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa, se o fato não constitui crime mais grave.
A medida coativa se faz necessária para combater uma realidade indisfarçável do país. Menores de 18 anos, muitos com a finalidade específica de delinquir, têm conseguido, seja em festas, bares ou estabelecimentos comerciais diversos, acesso com espantosa facilidade às mais variadas bebidas alcoólicas disponíveis para o consumidor maior de idade.
Por essa razão, optou o legislador em encerrar um embate jurídico que vem sendo travado no juízo da Infância e Juventude relativo ao tema: a antiga redação do artigo 243, ECA, não trazia vedação expressa à venda de bebidas alcoólicas, conforme se verifica:
Art. 243. Vender, fornecer ainda que gratuitamente, ministrar ou entregar, de qualquer forma, a criança ou adolescente, sem justa causa, produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica, ainda que por utilização indevida:
Pena – detenção de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa, se o fato não constitui crime mais grave.
Desta feita, emergiu relevante debate doutrinário e jurisprudencial, com teses que apontavam principalmente para dois sentidos: a) a venda de bebidas alcoólicas a menores de 18 anos era regulada pela LCP, havendo perfeita subsunção à norma especial, que prevalecia e deveria ser aplicada em relação à vedação genérica trazida pelo ECA; b) a expressão dependência física ou psíquica englobava a bebida alcoólica e, portanto, o ECA absorvia a contravenção prevista no artigo 63, inciso I da LCP.
Com a novatio legis desfaz-se qualquer dúvida interpretativa pois a norma é explícita ao vedar a venda de bebidas alcoólicas e revogar o artigo 63, I, da LCP. Logo, o ECA é a norma a ser considerada a partir de agora, tendo eficácia ex nunc, por se tratar de norma penal prejudicial ao réu.
No mais, não se pode olvidar que a nova redação do artigo 243, parte final (... outros produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica) não inclui as drogas. Isso porque se o ECA quisesse que nesse artigo existisse também essa vedação, teria explicitamente incluído (como exemplo, tem-se o artigo 81, desse mesmo diploma). Portanto, não havendo menção ao termo e à lei 11.343/06 (Lei de Drogas), refoge do alcance do ECA qualquer conduta que envolva a entrega de drogas, vez que, conforme a melhor interpretação hermenêutica, se a lei não distingue, não cabe ao intérprete fazê-lo (distinguir nec nos distinguere debemus).
Sendo assim, infere-se a seguinte distinção: uma pessoa que entregue droga, sob qualquer pretexto, ao menor de 18 anos, estará incursa no artigo 33, da lei 11.343/06 – crime de tráfico de drogas.
Por outro lado, uma pessoa que entregue (ou pratique as condutas1 constantes no novo artigo 243, ECA) qualquer substância que não seja considerada droga (não está, portanto, relacionada na portaria 344/98 da ANVISA) estará incursa no crime do ECA (cola de sapateiro e outras substâncias congêneres).
Para reforçar o presente entendimento, verifica-se que o preceito secundário do tipo penal (cominação de penas) do artigo 243, ECA, é expresso ao afirmar que as penas desse artigo são aplicáveis quando o fato não constituir crime mais grave. Ou seja, uma vez verificada que a conduta enquadra-se perfeitamente em outro tipo penal, mais gravoso, afastada está a aplicação do artigo 243, ECA: é o caso da configuração do artigo 33 da Lei de Drogas.
Por fim, há que se atentar para o fato de que o crime tipificado no artigo 243, ECA, é formal: basta a prática de quaisquer das condutas ali elencadas que o crime já se consuma, não se exigindo que a criança ou adolescente de fato ingiram a bebida alcoólica (ainda que possa ser de difícil configuração, a tentativa é admissível).
Mais uma vez o legislador lança mão de dispositivo de cunho penal visando a criminalização de condutas para fazer frente a um problema que vem se arrastando há muito tempo e ganhando cada vez mais espaço, em razão da natural vulnerabilidade dos menores de 18 anos, que merecem a proteção integral estatal. Há necessidade da intervenção estatal para a orientação e conscientização das pessoas maiores e menores de idade. Finalmente, é de bom alvitre ter em mente que a lei, por si só, apesar de seu comando coercitivo, não carrega o condão mágico para solucionar uma prática de muito arraigada.
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1Trata-se de tipo misto alternativo, ou seja, o agente que praticar mais de uma conduta, no mesmo contexto fático, responderá por um único delito.
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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde, advogado e reitor da Unorp - Centro Universitário do Norte Paulista.
*Antonelli Antonio Moreira Secanho, advogado, bacharel em Direito pela PUC/Campinas e pós-graduação lato sensu em Direito Penal e Processual Penal pela PUC/SP.
Extraído de Migalhas