Breve análise acerca da imposição do regime da separação obrigatória de bens no casamento da pessoa maior de 70 anos

Breve análise acerca da imposição do regime da separação obrigatória de bens no casamento da pessoa maior de 70 anos

Anderson Nogueira Guedes
quarta-feira, 14 de abril de 2021

Questão das mais relevantes, hodiernamente, reside na atual redação do artigo 1.641, II, do Código Civil pátrio, o qual impõe o regime da separação obrigatória de bens no casamento da pessoa maior de 70 (setenta) anos.

Assim dispõe o aludido dispositivo:

Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:

I - das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento;

II - da pessoa maior de 70 (setenta) anos; 

III - de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial. (grifo nosso)

Em que pese a disposição literal do artigo, que trata do instituto do casamento, o Superior Tribunal de Justiça tem entendido que tal imposição também se aplica à união estável, conforme bem asseveram Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto (2020, p. 1676/1677):

Aliás, o STJ tem entendido que a imposição do regime de separação obrigatória de bens imposto a quem se casar com mais de 70 anos também é aplicável à união estável (STJ, REsp 1.689.152, Rel. Min. Luis Salomão, 4ª T, DJe 22/11/2017).

Pela atual regra, que praticamente replicou a disposição do revogado artigo 258, parágrafo único, II, do Código Civil de 1916, ao se instruir processo de habilitação para o casamento de pessoa maior de 70 (setenta) anos, o Oficial do Serviço de Registro Civil das Pessoas Naturais competente deverá, obrigatoriamente, fazer constar de todo o processo, assim como do registro de casamento e das respectivas certidões, que o regime de bens estabelecido para aquele casamento é o da separação obrigatória de bens.

Dessa forma, não há a possibilidade de o casal optar, por exemplo, pelo regime da Comunhão Universal, haja vista a disposição legal que impõe, nesses casos, o regime da separação obrigatória (ou legal) de bens, ressalvada a possibilidade de adoção do regime da separação convencional (CC, art. 1.687), a fim de afastar a incidência da Súmula 377 do Pretório Excelso, conforme dispõe o Enunciado 634 CJF, aprovado na VIII Jornada de Direito, in verbis:

É lícito aos que se enquadrem no rol de pessoas sujeitas ao regime da separação obrigatória de bens (art. 1.641 do Código Civil) estipular, por pacto antenupcial ou contrato de convivência, o regime da separação de bens, a fim de assegurar os efeitos de tal regime e afastar a incidência da Súmula 377 do STF.

Deve-se ressaltar que, inicialmente, o Código Civil de 2002 previa a imposição de tal regime no casamento da pessoa maior de 60 (sessenta) anos. Posteriormente, por meio da lei 12.344/2010, houve a ampliação dessa idade para os atuais 70 (setenta) anos constantes da norma.

Mister se faz frisar que a motivação de tal disposição reside na preocupação do legislador em preservar a pessoa idosa dos intentos de pessoas "aproveitadoras" e "mal-intencionadas", que poderiam "se aproveitar" de um suposto estado de fragilidade/vulnerabilidade da pessoa maior de 70 (setenta) anos, de forma a preservar o seu patrimônio e garantir a sua subsistência/provisão, protegendo-o de relacionamentos mesquinhos e interesseiros, e, principalmente, do vulgarmente conhecido "golpe do baú".

Acontece que, na atual conjuntura e estágio do desenvolvimento humano, em que a ciência evolui exponencialmente a cada ano, influenciando diretamente na qualidade de vida das pessoas, a expectativa de vida do ser humano tem aumentado radicalmente, chegando-se a uma maior longevidade.

Para se ter uma ideia, sem o objetivo de adentrar em questões mais científicas, em 1940 a expectativa de vida do brasileiro era de 45,5 anos, enquanto que, em 2018, passou a ser de 76,3. (SENRA, Dante. UOL, 2019)

Houve, portanto, um salto na média de vida do brasileiro, que passou a viver mais.

Isso fica ainda mais evidente se compararmos a expectativa de vida do homem moderno com a existente, no Brasil, no ano de 1.900, que era de apenas 33,7 anos. (SENRA, Dante. UOL, 2019)

O fato é que o brasileiro está vivendo mais e com uma qualidade de vida superior àquela existente há alguns anos.

Vê-se, também, atualmente, uma preocupação maior das pessoas com o seu bem-estar físico, com um número crescente de pessoas das mais diversas idades, inclusive idosas, procurando se exercitar nas praças, pistas de caminhadas e academias de todo o país.

É evidente que, com o passar dos anos, as coisas tendem a mudar nas vidas de todos; a tendência é que aos 40 não se tenha o mesmo vigor físico que se tinha aos 20, tampouco que uma pessoa com 60, 70 anos ou mais tenha a mesma disposição de uma com 50, mas isso não quer dizer que o idoso não esteja apto a exercer todos os atos de sua vida civil, ainda mais diante do gradual aumento da expectativa de vida e com a preocupação de todos em envelhecer bem e com saúde. 

Pensar diferente seria rebaixá-lo a uma vexatória condição de presunção de incapacidade, o que é completamente vedado pelo nosso Ordenamento Jurídico.

A idade avançada, por si só, não pressupõe a incapacidade do indivíduo de exercer todos os atos de sua vida civil, normalmente. Muito pelo contrário! Os idosos têm o direito constitucional de envelhecer com dignidade.

Aliás, as pessoas idosas detêm algo que nenhum jovem possui: a experiência de vida! 

Outra vantagem que as pessoas maduras possuem, ao contrário do que pensam alguns, é o fato de que não estão tão suscetíveis às paixões quanto estão os mais jovens.

Penso que, salvo em casos excepcionais, quando uma pessoa mais velha se casa com outra bem mais nova está plenamente ciente de tudo o que envolve essa decisão, fazendo-o dentro de sua autonomia de vontade.

Além disso, haja vista o dinamismo social/tecnológico e de troca de informações atualmente existente, as pessoas estão cada vez mais atentas e informadas sobre as mais diversas questões, inclusive sobre "golpes do baú" e tudo o que envolve esse tipo de situação, mostrando-se a norma legal, a nosso ver, deveras ultrapassada. Lembremo-nos que semelhante disposição já constava do Código Civil de 1916, época em que se vivia, definitivamente, uma outra realidade.

Digo mais, tal disposição legal, se olhada sob o prisma constitucional, parece ferir terrivelmente o princípio da Dignidade da Pessoa Humana, insculpido no artigo 1º, III, da Constituição Federal, afrontando, por consequência, o próprio Estado Democrático de Direito, por ser um de seus fundamentos.

Além disso, referida norma tutela direito patrimonial em detrimento do direito existencial do indivíduo de ver as suas escolhas prevalecerem e de ser respeitado.

Isso fica ainda mais evidente se a analisarmos à luz de uma principiologia civil-constitucional norteadora do Direito de Família Contemporâneo, amplamente aceita pelo nosso Ordenamento Jurídico, sobretudo com relação ao Princípio da Liberdade, Princípio da Isonomia e o Princípio da Autonomia da Vontade, estando tal dispositivo, a nosso ver, eivado de patente inconstitucionalidade.

Convém ressaltar, entretanto, que, por se tratar de norma cogente, os Oficiais de Registro Civil, em regra, somente poderão instruir processo de habilitação de casamento de pessoa maior de 70 (setenta) anos, com a adoção de regime diverso daquele estabelecido no artigo 1.641, II, do Código Civil (separação obrigatória de bens), caso haja a declaração de inconstitucionalidade de tal dispositivo legal, pelo Poder Judiciário, no exercício do controle de constitucionalidade, difuso ou concentrado.

Contudo, questão peculiar e que merece destaque é a inerente ao casamento de pessoas maiores de 70 (setenta) anos, por conversão de união estável iniciada antes dessa idade.

Diante dessa situação, indaga-se: nesses casos, o regime de bens do casamento deverá ser o da separação obrigatória de bens?

Certamente que não!

Dever-se-á, em tais situações, permitir ao casal que adote outro regime de bens para o casamento, sobretudo nos casos em que facilmente se prova a existência da união estável, em razão da existência de filhos do casal e/ou mediante a apresentação de Escritura Pública Declaratória de União Estável ou Contrato de Convivência com firma reconhecida.

Explico: Imagine que João e Maria mantiveram uma união estável por mais de 30 ou 40 anos, possuindo vários filhos comuns e decidam se casar já na velhice, como forma de "regularizar" a sua situação. Qual seria a razão de se impor a esse casamento o regime da separação obrigatória de bens ou de enviá-los ao Judiciário para pleitear provimento judicial que autorize a adoção de outro regime?

Defendemos, nessas situações, a plena possibilidade de o casal optar, na Serventia de Registro Civil, por um regime de bens diferente daquele estabelecido no artigo 1.641, II, do Código Civil, desde que inexistam outras causas legais de imposição de tal regime.

Nesse sentido, fora aprovado, na III Jornada de Direito Civil, o Enunciado 261 do CJF, cujo teor é o seguinte: "A obrigatoriedade do regime da separação de bens não se aplica a pessoa maior de sessenta anos [hoje, setenta], quando o casamento for precedido de união estável iniciada antes dessa idade." (grifo nosso)

Nesse diapasão, também são as lições de Milton Paulo de Carvalho Filho (2019, p. 2035):

Na hipótese específica da união estável iniciada antes que um dos companheiros tenha completado 70 anos, portanto, sob o regime de comunhão parcial, entende-se não aplicável a regra (art. 1.641, II), pois não se pode privar os nubentes dos bens que adquiriram juntos em união estável, por sobrevir casamento sexagenário. (grifo nosso)

Convém ressaltar, por derradeiro, que tal entendimento também vale para a formalização da união estável, e não só para o casamento.

Desse modo, ao se lavrar, em Tabelionato de Notas, a competente Escritura Pública Declaratória de União Estável de pessoa maior de 70 (setenta) anos, cuja união tenha iniciado antes de tal idade, dever-se-á permitir ao casal que livremente escolha o regime de bens que a regerá.

Referências

BRASIL. Código Civil Brasileiro, Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2021.

CARVALHO FILHO, Milton Paulo de. Código Civil Comentado - Doutrina e Jurisprudência - Coordenação Ministro Cezar Peluso. Barueri[SP]: Editora Manole, 2019.

CJF. Enunciado 261 do CJF. Disponível aqui.  Acesso em: 11 fev. 2021

CJF. Enunciado 634 do CJF. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2021

ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe. Código Civil Comentado - Artigo por Artigo. Salvador : Editora Juspodivm, 2020.

SENRA, Dante. Expectativa de vida do brasileiro aumentou: o que isso realmente significa? Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2021.

*Anderson Nogueira Guedes é advogado e consultor jurídico. Especialista em Direito Notarial e Registral, Direito de Família e Sucessões e em Direito Tributário. Foi Tabelião Substituto do 2º Serviço Notarial e Registral da comarca de Campo Novo do Parecis/MT, por mais de 15 anos. Palestrante. Membro Efetivo da Comissão de Direito das Famílias e Sucessões e da Comissão de Estudos das Questões Jurídicas do Agronegócio, da OAB/MT. Autor de diversos artigos jurídicos publicados em sites especializados em Direito Notarial e Registral do país. Coautor das obras: Tabelionato de Notas - Temas Aprofundados e O Novo Protesto de Títulos e Documentos de Dívida - Os Cartórios de Protesto na Era dos Serviços Digitais, publicados pela Editora Juspodivm, e da obra O Direito Notarial e Registral em Artigos Vol IV, publicado pela YK Editora. Aprovado em vários concursos públicos para ingresso na Atividade Notarial e Registral.

Atualizado em: 14/4/2021 08:26

Fonte: Migalhas

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