CGJ/SP nega pedido de exclusão de paternidade em reprodução assistida a casal que vivia união estável homoafetiva

CGJ/SP nega pedido de exclusão de paternidade em reprodução assistida a casal que vivia união estável homoafetiva

quinta-feira, 16 de novembro de 2017 12:30

DICOGE 5.1 – PROCESSO Nº 1010250-76.2017.8.26.0100 (Processo Digital) – SÃO PAULO – P. A. S.
Registro Civil das Pessoas Naturais – Reprodução assistida requerida por casal que vive em união homoafetiva – PÁG. 31
DICOGE

DICOGE 5.1

PROCESSO Nº 1010250-76.2017.8.26.0100 (Processo Digital) – SÃO PAULO – P. A. S.
(353/2017-E)

Registro Civil das Pessoas Naturais – Reprodução assistida requerida por casal que vive em união homoafetiva – Utilização do material genético de um dos futuros pais, de óvulo doado e de útero cedido – Pedido do homem que não forneceu o material genético para não figurar como pai da criança – Anuência do pai biológico em relação a esse pedido – Impossibilidade – Manifestação de vontade anterior, ratificada durante todo o procedimento de reprodução assistida, que não pode ser revogada – Aplicação dos artigos 1.593 e 1.597, V, ambos do Código Civil e dos itens 42-A.1 e 42-B.2 do Capítulo XVII das NSCGJ – Estado de filiação que se caracteriza como direito personalíssimo da criança – Assento de nascimento que deve ser lavrado com o nome dos dois pais – Parecer pelo não provimento do recurso.

Trata-se de recurso administrativo interposto por P. A. S. contra a sentença de fls. 52/55, que determinou a lavratura do assento de nascimento do menor J. A. de O., constando como genitores tanto o recorrente, como C. A. C. B., com quem o primeiro conviveu em união estável homoafetiva.

Sustenta o recorrente, em síntese que: na época da concepção da criança, ele, doador de material genético, e seu excompanheiro já estavam separados de fato, mas a clínica responsável informou que a continuidade do processo de reprodução assistida dependia da participação dos requerentes originais; não sabiam que a anuência dada por C. A. implicaria paternidade deste último; não há vínculo genético, afetivo ou fático entre a criança e C. A.; não interessa ao menor o estabelecimento de um vínculo de paternidade com quem não tem interesse em exercê-la; suportou sozinho os custos relativos ao procedimento de inseminação; um mês antes do nascimento, todos os interessados firmaram documento por meio do qual C. renunciou à paternidade da criança; e a dupla paternidade pode gerar futuro constrangimento ao menor (fls. 65/80).
A Procuradoria de Justiça opinou pelo não provimento do recurso (fls. 91/93).

É o relatório.

Opino.

Segundo consta, a criança J. A. de O. foi gerada por reprodução assistida, procedimento solicitado por P. A. S., ora recorrente, e por C. A. C. B.. Para a concepção, foram utilizados o material genético do recorrente e óvulo doado anonimamente. A gestação, por sua vez, foi feita por meio de cessão temporária de útero.
Por ocasião do registro de nascimento, o recorrente, pai biológico da criança, apresentou declaração firmada por ele, por seu companheiro homoafetivo, pela doadora temporária de útero e pelo médico responsável pelo procedimento, no sentido de que C. A. C. B. renunciava figurar no registro de nascimento da criança (fls. 23).

A questão foi submetida ao MM. Juiz Corregedor Permanente do Registro Civil das Pessoas Naturais do 9º Subdistrito da Capital, que determinou que o assento de nascimento da criança fosse lavrado com o nome dos dois pais (fls. 52/54).
Recorre o pai biológico, pretendendo a reforma da decisão de primeiro grau, para que ele figure no assento de nascimento como único pai da criança.

Sem razão, contudo.

Conforme documentos acostados aos autos, P. A. S., ora recorrente, e C. A. C. B. procuraram clínica de reprodução humana para, juntos, terem um filho. Foi então providenciado óvulo proveniente de doadora anônima e obtida autorização, advinda do Conselho Regional de Medicina, de cessão temporária de útero. Para obter essa autorização, os futuros pais da criança declararam viver um relacionamento homoafetivo estável, com duração superior a onze anos (fls. 7).

Cabe observar que, no início do procedimento, o fornecedor do material genético masculino seria C. A. (fls. 8), panorama que só foi alterado alguns meses depois (fls. 5). Esse fato, por si só, demonstra o entrosamento que existia entre o casal, cujo objetivo aparente era criar uma criança, independentemente de ser filho biológica de um ou de outro.

A documentação de fls. 5/22 deixa claro que os futuros pais da criança foram devidamente informados sobre todas as etapas do procedimento e, principalmente, a respeito da seriedade daquilo que pleiteavam, ou seja, o auxílio médico para que pudessem, juntos, ter um filho, ainda que geneticamente apenas de um deles.
A separação do casal, seja durante a gestação da doadora de útero, seja em data anterior, como alega o recorrente, não é razão suficiente para alterar tudo que já havia sido acordado. Ambos conheciam a relevância do procedimento médico que tinham, por conta própria, escolhido e as consequências que daí adviriam. Aliás, se o casal se separou antes mesmo da concepção da criança e já tinha a intenção de registrá-la apenas em nome do pai biológico, a situação é mais grave. Com efeito, nesse caso, o casal tinha a obrigação de comunicar os envolvidos no procedimento da reprodução assistida (médico e doadora de útero, em especial) acerca da nova situação e não continuar o procedimento como se nada tivesse acontecido.

Por essa razão, a declaração de fls. 23, por meio da qual C. A. – com a anuência de seu ex-companheiro, da doadora de útero e do médico responsável pelo procedimento de reprodução assistida – renuncia à paternidade da criança, não tem o condão de revogar a anuência dada anteriormente. C. A., pelo menos dois anos antes do nascimento de J. A. (fls. 4), por sucessivas vezes, declarou a sua vontade de ser pai da criança. Não poderia, depois, um mês antes do nascimento, mudar de ideia e declarar que não quer sequer figurar no registro de nascimento.

Aplicável ao caso o artigo 1.593 do Código Civil, que assim dispõe:
“Art. 1.593. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem” (grifei).

O parentesco aqui decorre dessa outra origem. Origina-se, na hipótese, do consentimento prévio dado por C. A., no sentido de que seria pai da criança concebida com a utilização de material genético de seu então companheiro e de óvulo doado, e gerada em útero cedido.

Nesse sentido, aliás, o artigo 1.597, V, do Código Civil:
Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:
(…)
V – havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.

Ainda que aqui se esteja diante de uma união estável – para a qual as Normas de Serviço estenderam a presunção de paternidade1 – e homoafetiva – cuja natureza de entidade familiar já foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal -, a autorização prévia dada por C. A. cria a presunção de paternidade.

Sobre o tema, importante também que se mencione os itens 42-A.1 e 42.B.2 do Capítulo XVII das Normas de Serviços, ambos provenientes do recente Provimento CG nº 52/2016.

O primeiro estabelece a possibilidade de que dois homens ou duas mulheres figurem no assento de nascimento de uma criança gerada por reprodução assistida:
42-A.1. Nas hipóteses de filhos de casais homoafetivos, o assento de nascimento deverá ser adequado para que constem os nomes dos ascendentes, sem haver qualquer distinção quanto à ascendência paterna ou materna.

O segundo trata da necessidade do consentimento da pessoa que não forneceu material genético, mas que, ainda assim, constará no assento como pai ou mãe da criança. Note-se que o item normativo não faz qualquer alusão à possibilidade de arrependimento posterior daquele que consentiu com a realização do procedimento médico:
42-B.2. Nas hipóteses de doação voluntária de gametas ou embriões ou de gestação por substituição, deverá ser apresentado termo de consentimento, por instrumento público ou por escrito particular com firma reconhecida, do cônjuge ou do companheiro da receptora ou beneficiária da reprodução assistida, autorizando expressamente a realização do procedimento.

E embora se trate de esfera administrativa, não se pode perder de vista o interesse da criança, que tem o direito personalíssimo, indisponível e imprescritível de ostentar em seu assento de nascimento seu estado de filiação2, mesmo que esse parentesco tenha resultado de “outra origem”.

Por tudo isso, nota-se que a vontade dos pais, neste momento, é irrelevante. A vontade deles foi de suma importância na ocasião em que decidiram livremente ter um filho juntos. O arrependimento posterior não pode, em detrimento da criança, alterar a manifestação de vontade anteriormente declarada e ratificada durante todo o procedimento de reprodução assistida.

Anoto, por fim, que a alegação de que a dupla paternidade pode gerar futuro constrangimento ao menor, além de não poder ser acolhida, surpreende por ter sido levantada pelo recorrente. Ora, parece descabido que um homem que procurou clínica de reprodução humana para ter um filho com seu companheiro tenha esse tipo de preocupação. E se ele considera que o filho de dois pais pode passar por situações incômodas, não parece crível que acredite que o filho de apenas um pai – sem mãe – esteja a salvo de vivenciar momentos embaraçosos. Além disso, não faz sentido subtrair um direito da criança, para defendê-la de futuros e eventuais constrangimentos.

Nesses termos, o parecer que respeitosamente submeto à elevada apreciação de Vossa Excelência é no sentido de se negar provimento ao recurso administrativo.

Sub censura.

São Paulo, 6 de outubro de 2017.

(a) Carlos Henrique André Lisboa
Juiz Assessor da Corregedoria

NOTAS DE RODAPÉ
1 41 do Capítulo XVII das NSCGJ – Para o registro de filho havido na constância do casamento ou da união estável, basta o comparecimento de um dos genitores.
2 Art. 27 da Lei nº 8.069/90 – O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de Justiça.
DECISÃO: Aprovo o parecer do MM. Juiz Assessor da Corregedoria e, por seus fundamentos, que adoto, nego provimento ao recurso administrativo. Diante da relevância da matéria, determino a publicação do parecer e desta decisão no DJE, por três dias alternados, preservando-se a identidade dos envolvidos. Publique-se. São Paulo, 09 de outubro de 2017. (a) MANOEL DE QUEIROZ PEREIRA CALÇAS, Corregedor Geral da Justiça – Advogado:

MARCUS VINICIUS RIBEIRO CRESPO, OAB/SP 138.767.

Fonte: Diário Oficial
Extraído de Anoreg/BR

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