Herança digital: Você sabe o que é?
Herança digital: Você sabe o que é?
Sabrina Lima de Melo e Beatriz Torralvo
A matéria discute a herança digital, ressaltando a falta de legislação específica e a importância do testamento digital para planejar a sucessão de bens imateriais.
sexta-feira, 25 de abril de 2025
Atualizado às 09:46
A globalização trouxe consigo o avanço acelerado e desenfreado da tecnologia em nosso cotidiano. Muitos dos bens materiais que antes faziam parte da vida das pessoas transformaram-se repentinamente em bens digitais, facilitando transações financeiras, pagamentos, publicações, meios de comunicação e armazenamento de informações.
À medida que o desenvolvimento social se torna cada vez mais célere, o Direito, como ciência social aplicada, precisa acompanhar tais transformações, adequando-se às novas realidades e se relacionando diretamente com o contexto social, moral e político vigente.
Nesse cenário, surge uma nova perspectiva no campo jurídico: a sucessão de bens e direitos digitais.
O direito à herança no ordenamento jurídico brasileiro
De forma objetiva, observa-se que o direito à herança está inserido no rol dos direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu art. 5º, inciso XXX, o qual assegura expressamente o direito à sucessão hereditária.
O renomado doutrinador Silvio de Salvo Venosa conceitua a herança como:
"o conjunto de bens, de direitos, obrigações que se transmite, em razão da morte, a uma pessoa, ou a um conjunto de pessoas, que sobreviveram ao falecido." (VENOSA, 2013, p. 06).
Conceito de herança digital
Mas afinal, o que é herança digital?
A herança digital consiste na existência de bens imateriais deixados pelo falecido, que formam um acervo patrimonial no mundo tecnológico Como exemplos de bens digitais passíveis de sucessão, podemos destacar:
. Senhas bancárias;
. Contas em redes sociais (Facebook, Instagram, Twitter, TikTok, entre outras);
. Contas em jogos online;
. Assinaturas de plataformas de streaming;
. Lojas virtuais;
. Livros digitais (e-books);
. Criptomoedas;
. Pontuações de milhagens;
. Arquivos pessoais, como fotos, vídeos, áudios, conversas.
Esses bens podem representar, além de um valor afetivo inestimável aos herdeiros, um expressivo valor econômico.
Herança digital e o valor econômico pós-morte
A herança digital se apresenta, em muitos casos, como um verdadeiro patrimônio lucrativo. Alguns artistas, após o falecimento, continuam gerando receitas ainda maiores do que em vida.
Como exemplo, tem-se o cantor Michael Jackson, considerado o Rei do Pop, que possui uma conta ativa no Instagram com mais de 5 milhões de seguidores. Suas músicas continuam sendo tocadas e reproduzidas mundialmente, gerando lucros para seus herdeiros.
No Brasil, destaca-se a cantora Marília Mendonça, falecida em 2021, que após a sua morte conquistou mais de 4 milhões de novos seguidores em suas redes sociais. Suas músicas continuam sendo reproduzidas nas plataformas digitais, proporcionando receitas à sua família.
A necessidade de regulamentação específica
Apesar da evolução do Direito Digital, o ordenamento jurídico brasileiro ainda carece de legislação específica que trate de forma detalhada sobre a sucessão dos bens digitais.
Contudo, essa lacuna pode estar próxima de ser suprida. Em abril de 2024, a comissão de juristas responsável pelo anteprojeto de reforma do CC apresentou propostas significativas no campo do Direito Digital. Dentre as inovações, destaca-se a criação formal do conceito de herança digital, reconhecendo a necessidade de adaptar o ordenamento jurídico às transformações tecnológicas que impactam diretamente as relações patrimoniais e pessoais.
Segundo a proposta apresentada e noticiada pela CNN Brasil, a herança digital abrange "ativos intangíveis e imateriais com conteúdo de valor econômico, pessoal ou cultural, como moedas eletrônicas, criptoativos, senhas bancárias, milhas aéreas, jogos cibernéticos, arquivos, dados financeiros, perfis em redes sociais, conversas, fotos e vídeos". A proposta visa garantir aos herdeiros o direito de suceder o falecido também no ambiente virtual, com o objetivo de preservar tanto a memória quanto o valor patrimonial.
O relator da comissão, advogado Flávio Tartuce, destacou que a ausência de legislação específica sobre o patrimônio digital pode comprometer os direitos sucessórios, especialmente diante das perdas financeiras ocasionadas pela falta de previsão legal. Assim, a proposta visa garantir maior segurança jurídica aos herdeiros, com base no princípio da continuidade patrimonial. Em relação à questão, a matéria da CNN Brasil destaca que essa inclusão busca garantir maior clareza jurídica na gestão do patrimônio digital e resolver questões relacionadas ao uso de imagens post-mortem, entre outras preocupações contemporâneas.
Além da herança digital, o anteprojeto também sugere mudanças profundas no direito das famílias e das sucessões, como a exclusão dos cônjuges da lista de herdeiros necessários - o que, caso aprovado, alteraria diretamente o regime de partilha entre os companheiros e cônjuges.
Embora o projeto ainda dependa de análise e aprovação pelo Congresso Nacional, representa um avanço significativo rumo à modernização do Direito Civil.
Ademais, mesmo sem legislação específica em vigor, o direito dos herdeiros sobre o acervo digital já é reconhecido com base nos princípios do Direito Sucessório. Prova disso é que diversas plataformas digitais, como Facebook, Instagram, Twitter e YouTube, já permitem que o usuário, ainda em vida, defina providências a serem tomadas após sua morte, como exclusão do perfil, conversão em memorial ou indicação de um responsável. Trata-se de uma espécie de testamento digital informal.
O testamento como instrumento de planejamento sucessório digital
Diante da realidade tecnológica atual, o testamento se apresenta como uma medida simples, preventiva e eficaz para assegurar a vontade do falecido quanto ao destino de seus bens, inclusive os digitais.
A elaboração de um testamento possibilita:
. Determinar o acesso dos herdeiros a senhas e dados pessoais;
. Definir a exclusão ou manutenção de contas em redes sociais;
. Nomear um responsável pelo acervo digital;
. Regular a partilha de eventuais bens digitais com valor econômico.
O planejamento sucessório é, portanto, uma ferramenta essencial para garantir a lembrança, o respeito à vontade do falecido e a preservação do valor patrimonial e afetivo dos bens digitais.
Considerações finais
A herança digital é uma realidade presente e crescente nas relações pessoais e patrimoniais. O Direito, enquanto instrumento de regulação social, deve acompanhar essa evolução, buscando soluções jurídicas adequadas e eficazes para assegurar os direitos dos sucessores.
Por fim, destaca-se a importância do planejamento sucessório, com especial atenção ao testamento, como meio seguro de garantir que o acervo digital do falecido seja destinado conforme a sua vontade, preservando tanto os valores afetivos quanto os econômicos envolvidos.
Sabrina Lima de Melo
Graduanda em Direito pela Escola Paulista de Direito (EPD) e Estagiária na Thopen Energy
Beatriz Torralvo
Consultora de Privacidade na QOD Tech, Graduanda de Direito na Universidade Paulista (UNIP), membro da APDADOS e, Comissão Especial de Privacidade, Proteção de Dados e IA da OAB de São Paulo.
Fonte: Migalhas