Legalize já

LEGALIZE JÁ

1.8.14    
Por Matheus Boni Bittencourt - Via MÍDIA Democrática -

Com o fim da demonização das drogas como mal absoluto, será mais fácil informar o público sobre os possíveis malefícios do uso ou abuso de drogas, avalia sociólogo.

A estratégia punitivista consiste na individualização das responsabilidades. Tomemos como exemplo o uso de substância psicoativas, chamadas popularmente de “drogas”. Essas substâncias se definem por alterar a consciência do consumidor, provocando sensação de prazer e em muitos casos dependência psicofísica. É inquestionável que o abuso das drogas provoca, em proporções variáveis, uma série de danos, tanto ao indivíduo quanto àqueles que o cercam.


Do uso recreativo ao abuso das drogas e dependência mórbida há uma certa distância que precisa ser percorrida. Alguns consumidores conseguem se “segurar” no uso recreativo, fazendo uso controlado para proporcionar prazer para si e alívio às agruras da vida. Outros vão além e se tornam dependentes, fazem um grande mal a si mesmos e aos outros ao seu redor.


A distância entre o uso e abuso não é apenas questão de escolha e vontade individual. Pesquisas diversas – médicas, psicológicas, sociológicas, demográficas e econômicas – demonstram como as origens, condições, valores e história de cada usuário podem determinar a transformação de um usuário recreativo em um usuário mórbido. Múltiplos fatores sociais, econômicos e culturais estão relacionados à dependência química das diversas drogas lícitas ou ilícitas. A luta contra a dependência química, portanto, exige a coordenação de múltiplas intervenções, para dar a melhor prevenção e tratamento ao problema em questão.


A estratégia punitiva abstrai todos estes fatores sociais e se concentra em um único: a decisão individual. A escolha e vontade do indivíduo, concebido de modo abstrato, é elevada a único fator decisivo. Logo, a questão relevante passa a ser a culpa individual e a resposta única, a repressão/ punição. Trata-se de uma visão necessariamente reducionista, pois reduz uma série de problemas coletivos à culpa individual. Esta lógica pode ser observada em relação a qualquer crime: furtos, roubos, homicídios, posse de drogas, etc. Para todos, há múltiplos fatores sociais que determinam uma maior ou menor escala, gravidade e impacto da transgressão à lei. A lógica punitiva se concentra em apenas um fator, que é a escolha individual.


Sendo assim, a aposta na solução punitiva é guiada pelo reducionismo. Até aí, poderíamos pensar ainda a punição legal como uma das intervenções coletivas necessárias. Para reduzir os crimes contra a propriedade, por exemplo, seria interessante investir tanto em programas contra o desemprego e desigualdade, quanto em maior capacidade investigativa para a polícia.


O problema é quando a punição e polícia deixam de ser uma “intervenção” sobre os fatores para se somarem aos fatores que produzem os danos coletivos. A questão das drogas é um exemplo muito bom para se pensar o fenômeno da “solução que se torna um problema”.


A criminalização das drogas é impulsionada por uma ideologia da “sociedade abstêmia”, onde, pela primeira vez na história humana, ninguém utilizará substância psicoativas para ter a sua consciência alterada. O abstencionismo forçado seria obtido com o desaparecimento das substâncias. Sem drogas, sem “drogados”, sem efeitos perversos do abuso de drogas sobre os indivíduos e famílias.


Já mencionamos os fatores múltiplos que levam ao dano. A proibição das drogas teria como objetivo evitar o abuso de drogas de um modo muito simples: eliminando o uso. Sendo assim, os usuários, assim como os produtores e vendedores, são tratados como criminosos, esperando assim que a coerção da polícia e das prisões seja o suficiente para acabar com a demanda e com a oferta, por meio da intimidação estatal.


O que ocorre, de fato? Os consumidores não se deixam intimidar e continuarão procurando fornecedores dos produtos que querem usar – agora de modo clandestino, escondido, longe das vistas de outros, principalmente da polícia. A indústria lícita que produzia essas drogas desaparece e em seu lugar a satisfação da demanda é feita por um tipo de “capitalismo aventureiro” (expressão de Max Weber) que é legalmente definido como “tráfico de drogas ilícitas”. Os traficantes de drogas são os capitalistas aventureiros que se arriscam a serem presos para poderem lucrar com um mercado ilegal onde não precisam cumprir qualquer obrigação trabalhista, tributária ou sanitária.


Sem possibilidade de administração de conflitos através de tribunais e fiscalização, a “concorrência comercial” entre os grupos de traficantes (gangues, cartéis, “comandos”, etc), se dá pela violência armada, seguindo, aliás, a mesma lógica que o Estado promove para reprimir a circulação de drogas ilícitas. O controle repressivo sobre as drogas por parte da polícia e poder Judiciário abre possibilidades de uso da força pública para fins privados, aumentando a corrupção policial e judiciária. Para se defender de outros bandidos e da polícia, os grupos de traficantes se armam e cooptam jovens pobres para serem os seus “pistoleiros” e “soldados”. Em reação, a polícia se arma ainda mais, se tornando cada vez mais parecida com um exército de ocupação quando age nos bairros pobres. A indústria armamentista legal vende à polícia (ou militares realizando policiamento) e o tráfico de armas vende para os traficantes de drogas.


A repressão policial, no entanto, recai principalmente sobre os locais de maior concentração de pobreza – favelas ou periferias urbanas. É lá que se fazem sentir os piores efeitos da repressão penal e do tráfico de drogas: cooptação de jovens pobres por gangues de traficantes, violência armada cometida por traficantes ou policiais pelos mais diferentes motivos, etc. O maior lucro do tráfico de drogas, porém, não fica nas favelas. Os principais traficantes são ricos ou enriquecidos, não moram em favelas e dificilmente são presos ou se envolvem em tiroteios.


À medida que o tráfico de drogas se torna mais organizado e sofisticado, desenvolvem-se novas conexões. Através da lavagem de dinheiro, banqueiros e paraísos fiscais se tornam beneficiários indiretos do tráfico de drogas, da mesma forma que o caixa dois de campanhas eleitorais.


Como toda medida de endurecimento penal, a criminalização das drogas gera um impacto no processamento de crimes pelos tribunais penais. Com novos tipos penais, a polícia prenderá pessoas que de outro modo não seriam presas e disporá de maior poder e controle sobre os cidadãos. Os acusados poderão responder por mais crimes e passar maior tempo na prisão. Indivíduos reincidentes serão condenados a penas cada vez maiores. Os ricos pagarão advogados caros e competentes, coisa que os pobres não dispõem, além de não terem educação formal suficiente para terem uma melhor nação das leis em vigor.


Como consequência, as cadeias ficarão mais e mais cheias de pobres, impondo custos e humilhações aos seus familiares. A expansão do encarceramento seletivo, além da estigmatização de vários grupos sociais e da desgraça de vários indivíduos e famílias, cria demanda por expansão das vagas prisionais, cada uma das quais tem um custo muito superior ao de uma vaga numa escola e outros benefícios sociais. Se o crime pode provocar um prejuízo, a punição também tem um preço. E pode ser um negócio lucrativo para alguns, às custas da coletividade.


A criminalização de algumas drogas não contribui para resolução do problema do abuso de drogas. Pelo contrário, o soma a outro problema, que é o tráfico de drogas, o mercado ilegal explorado por capitalistas aventureiros, agrupados em gangues armadas ou cartéis.


O que se defende com a legalização das drogas é uma estratégias pragmática de redução de danos. É necessário distinguir o “uso” do “abuso” de drogas, respeitando a liberdade individual, mas também garantindo o direito à educação, informação e assistência médica, social e psicológica para os dependentes e seus familiares.


Segundo a estratégia de redução de danos, as drogas devem ser legalizadas para que seja eliminado o tráfico de drogas, o capitalismo aventureiro que tem gerado um enorme volume violência ao longo das últimas décadas. Os homicídios ou a corrupção tem outras raízes, é verdade, mas não se pode negar que o tráfico de drogas agrava a violência gerada pela desigualdade, segregação urbana, desemprego, autoritarismo policial, consumismo, etc. Com a legalização, será mais fácil regulamentar a produção, comércio e consumo dentro de padrões sanitários. Com o fim da demonização das drogas como mal absoluto, será mais fácil informar o público sobre os possíveis malefícios do uso ou abuso de drogas. Com o fim da marginalização dos consumidores, será mais fácil garantir assistência e cuidados aos dependentes químicos e seus familiares, agora não mais estigmatizados como criminosos.


*Matheus Bonie é sociólogo e está mestrando em ciências sociais.

 

Extraído de Tribuna da Imprensa Online
 

Notícias

Inseminação caseira: Veja impacto jurídico da prática não regulada no país

Reprodução assistida Inseminação caseira: Veja impacto jurídico da prática não regulada no país Recente decisão do STJ, reconhecendo dupla maternidade em caso de inseminação caseira, denota a urgência do tema. Da Redação segunda-feira, 4 de novembro de 2024 Atualizado às 09:56 Registrar o...

Câmara derruba taxação de transmissão por herança de previdência privada

Derrota dos estados Câmara derruba taxação de transmissão por herança de previdência privada 30 de outubro de 2024, 21h22 A rejeição do Congresso Nacional em dispor no texto da lei sobre a incidência do ITCMD nos planos de VGBL é um bom indicativo de que a pretensão dos estados não deve ser...

Consequências da venda de lote desprovido de registro

Opinião Consequências da venda de lote desprovido de registro Gleydson K. L. Oliveira 28 de outubro de 2024, 9h24 Neste contexto, o Superior Tribunal de Justiça tem posição pacífica de que o contrato de compromisso de compra e venda de imóvel loteado sem o devido registro do loteamento é nulo de...