Migalhas – Transgêneros, registro civil e novos modelos familiares

Migalhas – Transgêneros, registro civil e novos modelos familiares

Há uma franca ressignificação do modelo tradicional de família, antigamente compreendido pela união entre um homem e uma mulher (art. 226, § 3º, CF/88). A dinamicidade das relações, somada à multiplicidade dos efeitos delas decorrentes, reclamam uma postura estatal tanto negativa, obstativa de condutas danosas ao indivíduo, quanto positiva, apta a conferir meios de consecução do pleno desenvolvimento do indivíduo frente à sociedade. Trata-se de uma realidade palpável, mas longe de ser amplamente aceita ou juridicamente pacificada.

O presente artigo analisa o reconhecimento dos transgêneros1 e a desburocratização realizada pelo Conselho Nacional de Justiça pelo Provimento 73/2018, que permitiu a alteração do nome e do sexo nos respectivos registros de nascimento e casamento, abordando sua importância para o reconhecimento de novos modelos familiares.

Não resta dúvida de que a identidade de gênero é um conceito amplo que cria espaço para a auto-identificação da pessoa e que faz referência à sua vivência.

A identidade de gênero está ligada a sua expressão e múltiplas formas, sendo a vivência interna e individual do gênero, tal como cada pessoa se sente, a qual pode corresponder ou não com o sexo designado no momento do nascimento, sobretudo com a livre possibilidade de modificar seu corpo e/ou sua aparência, inclusive com intervenções cirúrgicas2.

Dessa forma, interação social e padrões comportamentais, como vestimenta, modo de falar ou de se portar, são exemplos da expressão de gênero, mas que não o limitam ou o condicionam, pois podem ou não corresponder à identidade de gênero. Para tanto, a autopercepção é mais relevante do que especificamente a condição física ou a forma como é exteriorizada.

Em regra, o transgênero enfrenta uma disparidade entre o sexo aparente e o psicológico, com questões de diversas ordens. Além de um severo conflito individual, há repercussões nas áreas médica e jurídica. O transgênero tem a sensação de uma biologia equivocada, porquanto, ainda que reúnam em seu corpo todos os atributos físicos de um dos sexos, seu psiquismo pende ao sexo oposto3.

Essa realidade comportamental evidencia a necessidade e urgência da matéria, uma vez que a ausência do reconhecimento de direitos incentiva discursos equivocados4.

Por muitos anos, por falta de aparato jurídico-legal, o indivíduo transgênero, mesmo se identificando de modo distinto ao seu sexo biológico, não encontrava meios legais de efetivação de sua expressão íntima. Do que decorreu a denominada posse de estado do transgênero, caracterizada pelo exercício contínuo e público de uma realidade íntima que, com o decorrer do tempo, projetou-se socialmente conferindo nome, tratamento e fama correspondentes ao modo exteriorizado e não ao biológico.

O aspecto psicossocial, defluente da identidade de gênero, é também autodefinido por cada indivíduo e essa particularidade, até então rechaçada pelo ordenamento jurídico, passa a ser reconhecida e, “quando se analisa a veracidade registrária à luz da dignidade da pessoa humana é o documento que deve se adaptar a pessoa e não a pessoa que deve se adaptar ao documento”5.

A dificuldade do direito positivo em acompanhar os fatos sociais exige a aplicação de princípios que funcionam como fontes de oxigenação do ordenamento jurídico, sobretudo a dignidade da pessoa humana, que permite a tutela integral e unitária da pessoa, garantindo que cada um manifeste sua verdadeira identidade6.

Assim, restou pacificado na jurisprudência que a identificação do sexo não se restringe ao aspecto biológico, o que poderia limitar o registro civil ao aspecto morfológico, gonádico ou cromossômico, contrariando os próprios princípios que regem a matéria7.

A inércia legislativa dá vasão ao ativismo judicial, pois a falta de fôlego do Direito não pode proporcionar a negativa de direitos.

A lei 11.340/2006 trouxe nova regulamentação à família, a ser compreendida como a “comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; independentemente de orientação sexual”8. Essa definição se harmoniza com o conceito de casamento “entre cônjuges”, estabelecida pelo art. 1.511 do Código Civil. Esse avanço garantiu direitos também aos transgêneros.

Atualmente a franca desburocratização realizada pelo Conselho Nacional de Justiça pelo Provimento 73/2018 permitiu a alteração do nome e do sexo nos registros civis, notadamente nascimento e casamento9.

A medida é extremamente efetiva, porque os Registros Civis das Pessoas Naturais são representantes estatais com maior capilaridade territorial e aptidão para, de modo seguro e simplificado, concretizar celeremente as expressões mais ínsitas do indivíduo nas diversas relações familiares e sociais10.

A complexidade e a dinamicidade do tema reclamam um olhar atento e diligente do Estado como garantidor de tais direitos fundamentais11. Isto porque a transição do conceito binário de sexo para o padrão plúrimo traz consigo diversas demandas, que também precisam ser corajosamente enfrentadas. Dentre elas, o fato de que o sexo pode comportar conceitos diferentes, situação a ser conjugada com as demais liberdades individuais e até coletivas, para uma interação sadia entre indivíduos.

Trata-se de algo extremamente desafiador e talvez até de complexa tratativa, mas que não pode ficar à míngua de reflexão, nem de medidas de colmatação. Nesse sentido, a malha cartorária brasileira tem contribuído para a efetivação da dignidade e exercício da cidadania, pela franca desburocratização de procedimentos e especificamente no reconhecimento dos direitos dos transgêneros12.

Conclusão

A família deve ser tratada de forma plural, contemplando os diversos arranjos existentes na sociedade, por isso seu conceito não deve guardar qualquer relação com o gênero ou a orientação sexual do casal, preservando a dignidade da pessoa humana e o direito à busca da felicidade.

É preciso atenção ao modelo familiar do imaginário social, composto pela união de pai, mãe e filhos do casal. Isso porque o modelo tradicional não pode ser visto como único, verdadeiro ou correto, é apenas um arranjo possível dentre tantos outros. Modelos diversos devem ser igualmente acolhidos pelo sistema. A intolerância com a diferença é que pode ser extremamente prejudicial à sociedade, por criar situações informais e relações marginalizadas, ainda mais em um contexto marcado pela polarização.

O Provimento 73/2018 do Conselho Nacional de Justiça é um mecanismo de extrema importância para o desenvolvimento das famílias. Que seja verdadeira mola propulsora de direitos e, como tal, mesmo que por vezes pareça retroceder, diante das celeumas decorrentes das lacunas legislativas, avance em verdade para conferir maior inteireza às pessoas e às relações familiares.

*Daniella de Almeida Teixeira é especialista em Direito Público, Direito Tributário, Direito Constitucional e Direito Notarial e Registral. Pesquisadora. Oficial de Registro Civil em São Joaquim da Barra/SP.

**Erica Barbosa e Silva é mestre e doutora em Direito Processual pela USP. Professora convidada de Processo Civil e Registros Públicos em cursos de pós-graduação lato sensu. Pesquisadora. Autora de diversos artigos e livros jurídicos. Membro do IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família) e do IBDP (Instituto Brasileiro de Direito Processual). Conciliadora. Oficial de Registro Civil em SP.

Bibliografia

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TARTUCE, Flavio. Manual de Direito Civil. 8 ed. São Paulo: Método, 2018.

__________

1 Este estudo é uma releitura do tema, já publicado pelas autoras in “Consecução dos direitos dos transgêneros e novos modelos familiares”, Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões, v. 35, mar./abr.2020, Porto Alegre, LexMagister, 2020.

2 Nesse sentido, v. OEA – Organização dos Estados Americanos. Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Opinión Consultiva OC-24/17 – IDENTIDAD DE GÉNERO, E IGUALDAD Y NO DISCRIMINACIÓN A PAREJAS DEL MISMO SEXO, DE 24 DE NOVIEMBRE DE 2017. Disponível aqui. Acesso em 28 nov. 2019.

3 Para Maria Berenice Dias, “Ainda que o transexual reúna em seu corpo todos os atributos físicos de um dos sexos, seu psiquismo pende, irresistivelmente, ao sexo oposto. Mesmo sendo biologicamente normal, nutre um profundo inconformismo com o sexo anatômico e intenso desejo de modificá-lo, o que leva à busca de adequação da externalidade de seu corpo à sua alma”, in Transexualidade e o direito de casar, disponível aqui, publicado em 20/7/2010. Acesso em 27 nov. 2019.

4 Frise-se que a identificação do discurso de ódio e os elementos que o caracterizam tendem a ultrapassar o limite da livre manifestação de pensamento, devendo ser considerados ilegais. A ausência de parâmetros objetivos para o enquadramento desse discurso mais uma vez faz emergir a relevância do Judiciário na aplicação de direitos e dos juristas ao realizarem estudos sobre o tema, denunciando tais situações e buscando concretamente às respostas para tais demandas.

5 Cf. Decisão proferida pelo Juiz de Direito Guilherme Madeira Dezem, Processo 0036840-54.2010.8.26.0100, 2ª. Vara de Registros Públicos do Foro Central da Comarca da Capital/SP, j. 31/1/2011.

6 É nesse sentido o voto da Min. Nancy Andrighi, que de forma pioneira preconizou “Para o transexual, ter uma vida digna importa em ver reconhecida a sua identidade sexual, sob a ótica psicossocial, a refletir a verdade real por ele vivenciada e que se reflete na sociedade”, v. REsp 1.008.398/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, j. 15/10/2009,  DJe 18/11/2009.

7 Para o Min. Luis Felipe Salomão, “Exegese contrária revela-se incoerente diante da consagração jurisprudencial do direito de retificação do sexo registral conferido aos transexuais operados, que, nada obstante, continuam vinculados ao sexo biológico/cromossômico repudiado. Ou seja, independentemente da realidade biológica, o registro civil deve retratar a identidade de gênero psicossocial da pessoa transexual, de quem não se pode exigir a cirurgia de transgenitalização para o gozo de um direito”, v. REsp 1626739/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, j. 9/5/2017, DJe. 1/8/2017.

8 Art. 5º, inciso II e parágrafo único.

9 Cf. Marcelo Salaroli de Oliveira, “Mudança de nome e sexo no Registro Civil: a identidade de gênero” in Revista IBDFAM, v. 30 (nov./dez.), Belo Horizonte:IBDFAM, 2018, p. 129, “Percebe-se, assim, que a efetivação do direito das pessoas transgêneros alterarem nome e sexo no registro civil, considerado direito humano fundamental, no ramo dos direitos da personalidade, nasceu, vicejou e se consolidou por ação do Poder Judiciário, que no fim desse longo processo ainda teve a grandeza e a humildade de reconhecer que a questão já não demandava a atuação da Justiça, determinando então que esse procedimento possa ser realizado diretamente pelo serviço de Registro Civil”.

10 LEWANDOWSKI, Ricardo. Revista Cartórios com você. Entrevista com o Ministro Ricardo Lewandowski. Ed. 4, ano 1 – julho/agosto de 2016. Disponível aqui. Acesso em 24 jul. 2019.

11 Sobre a importância do tema, v. Maria Berenice Dias, in Ações afirmativas: a solução para a desigualdade, disponível aqui, publicado em 31/8/2010. Acesso em 28 nov.2019.

12 Para Marcelo Salaroli de Oliveira, “Mudança de nome e sexo no Registro Civil: a identidade de gênero”, ob.cit., p. 130, “O casamento entre pessoas do mesmo sexo, o registro de nascimento em técnicas de reprodução assistida (procriação medicamente assistida), o reconhecimento de filho socioafetivo e a alteração de sexo e prenome diretamente no registro civil são só alguns exemplos de que o cartório exerce com eficiência a efetivação e a salvaguarda dos direitos e liberdades individuais, sempre em equilíbrio com a segurança jurídica”.

Fonte: Migalhas
Extraído de Anoreg/BR

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