NOME NÃO É ESTADO CIVIL
NOME NÃO É ESTADO CIVIL
Evanildo da Silveira
16 nov 2022_09h07
A bancária paranaense Rosana Congrossi Moreira, de 52 anos, e a médica cardiologista mineira Maria Eugênia Tótola, de 51, estão separadas pelos mil km entre Curitiba e Belo Horizonte, mas têm algo em comum. Casadas no papel, nenhuma adotou, ao contrário da tradição nacional, o sobrenome dos respectivos maridos. No caso da primeira, ela já vai no segundo casamento – mas continua com o nome original, o chamado “nome de solteira”.
Moreira, que se casou pela primeira vez em 1996, e Tótola, cujo único casamento ocorreu em 1997, estão entre as pioneiras de uma tendência iniciada com as mudanças da legislação brasileira sobre o casamento civil. De acordo com dados da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil), nos últimos vinte anos o número de mulheres que adotam o sobrenome do marido caiu 24%, passando de 59,2% do total de casamentos em 2002 para 45% no ano passado.
A obrigatoriedade de a mulher adotar o sobrenome do marido no Brasil foi estabelecida pelo Código Civil de 1916. Em 1962, foi promulgada a lei nº 4.121, conhecida como Estatuto da Mulher Casada, que tornou facultativo o acréscimo. “Mas como o Código Civil continuava em vigor e vivíamos numa sociedade machista, a esposa continuou adotando o sobrenome do marido”, explica a advogada Antília Reis. Segundo ela, a Lei do Divórcio, de 1977, passou a permitir que a mulher optasse entre retirar ou não o sobrenome do ex-cônjuge. “Só era obrigada a suprimir o sobrenome se fosse ‘culpada’ pela separação – caso de traição, por exemplo – ou se a iniciativa de se divorciar tivesse sido dela.”
Em 1988, a nova Constituição igualou homens e mulheres em seus direitos e deveres – ou seja, os casais poderiam, em tese, adotar o sobrenome um do outro. As mulheres continuaram podendo adotar ou não o sobrenome do marido. “Ela não previu, no entanto, de maneira explícita, o uso do sobrenome da esposa pelo marido”, explica. “Os homens que queriam fazer isso tinham que entrar na Justiça – e foi o que de fato alguns fizeram.” Só o Código Civil de 2002 explicitou que homens e mulheres podiam adotar livremente os sobrenomes dos respectivos cônjuges – e foi a partir daí que se fortaleceu a tendência de as mulheres não adotarem o sobrenome do marido.
No caso dos homens, a taxa dos que resolveram adotar o sobrenome da mulher é insignificante. Subiu um pouco nos primeiros três anos do novo Código Civil, chegou a 2% dos casamentos em 2005, mas vem caindo, e em 2021 foi de apenas 0,7%. A mudança dos sobrenomes por ambos os cônjuges no casamento representou em 2021 7,7% do total de casamentos. O ponto mais alto da série foi em 2014, quando em 13,8% dos matrimônios os dois cônjuges adotavam o sobrenome um do outro.
Foi essa a decisão do coordenador de inteligência de negócios Pedro Gomes de Isern de Araujo e de sua mulher, a psicóloga Caroline Isern de Araujo, ambos de 32 anos, moradores da cidade de São Paulo e casados há cinco anos. “Ela ficou com meu sobrenome paterno, Araujo, e eu com o dela, Isern”, conta o marido. “No caso da Caroline, ela suprimiu dois de seus sobrenomes, Fernandes e Kaminskas, ambos maternos.”
As motivações para homens e mulheres adotarem ou não o sobrenome um do outro são tão variadas quanto a personalidade e as circunstâncias da vida de cada um. Araujo, por exemplo, diz que sempre sonhou que sua mulher adotasse o sobrenome do pai dele. “Ele morreu antes que eu a conhecesse e sempre imaginei que se dariam muito bem juntos e que para ele seria uma alegria ela receber seu sobrenome”, explica.
A decisão dos dois foi tomada durante uma viagem, quando assistiram a uma reportagem sobre homens que adotaram os sobrenomes das suas mulheres. “Foi aí que decidi que o faria”, diz. “Caroline já não estava muito animada com o fato de ter que só ela mudar todos os seus documentos. E ela estava certa, pois trocar toda a documentação é realmente algo bem chato de se fazer. Outra grande motivação que eu tive foi o fato de seus pais terem sempre me tratado como um filho. Tenho por eles uma grande admiração e carinho e sempre pude contar com todo apoio necessário.”
No caso da paranaense Rosana Moreira, ela diz que nunca pensou muito na questão e nunca teve alguma ideia do tipo “ah, não vou adotar o nome do meu marido”. “Por algum motivo, em algum momento da minha vida eu soube que não era mais obrigatória a adoção do nome do marido”, revela. “A partir daí, nem considerava a possibilidade de usar o nome do futuro digníssimo, que muito provavelmente ainda nem conhecia. Falava que continuaria sempre sendo Rosana Congrossi, da mãe, e Moreira, do pai.”
Quando casou pela primeira vez, aos 27 anos, ela estava grávida da sua primeira filha. “Estar esperando a minha menina era a coisa mais relevante naquele momento”, lembra. “Só fomos falar do assunto do nome de casada quando a atendente do cartório me perguntou como eu passaria a assinar. Respondi que não mudaria nada e o Luiz [Silva de Oliveira] só concordou, sem nada questionar.”
Em 2014, Rosana Moreira se separou e em 2016 se casou com seu atual marido. Também não adotou o sobrenome dele. “Mas nesse casamento eu tive um motivo a mais para recusar o sobrenome do esposo. Meus filhos têm os sobrenomes Congrossi Moreira Silva de Oliveira. Se eu trocasse meu nome no segundo casamento, ele passaria a ser diferente do que consta nos documentos dos dois. Situação que me incomodaria muito.”
A paranaense Maria Eugênia Tótola sempre teve convicção desde cedo que não adotaria o sobrenome do homem com quem se casasse. “Foi uma decisão nascida na minha adolescência”, revela. “Já aí achava que meu nome era a minha identidade, era o ‘eu’, que eu sempre fora desde o nascimento. Mudar meu nome, para mim, era abrir mão daquilo que eu considerava ser eu a vida inteira. Por que, ao casar, eu precisaria de um ‘acréscimo’, se já me considerava inteira? O todo que eu era precisava carregar uma parte do outro?”
Além disso, ela diz que não podia esquecer do valor simbólico da antiga obrigatoriedade de a mulher assumir o nome da família do marido, muitas vezes apagando o da sua própria, da qual viera. “É sabido que no passado, a mulher, ao casar, deixava de pertencer àqueles de onde viera para passar a ser posse do seu marido”, diz. “E isso era atestado pela mudança do seu próprio sobrenome. Submissão? Atestado de posse?” Até hoje, quando a mulher opta pelo sobrenome do marido, sua certidão de nascimento original fica retida no cartório. O objetivo é evitar que ela tenha dois documentos com nomes distintos – e, dali em diante, passa a valer apenas a certidão de casamento.
Para as mulheres que optam pelo sobrenome do cônjuge, os motivos são variados. A advogada paulistana Branca Lescher, de 58 anos, foi casada durante 28 anos e se divorciou há seis. “Eu na verdade não tinha resolvido ainda. Estava pensando sobre isso, quando minha futura sogra nos deu de presente os convites do casamento e os cartões de agradecimento dos presentes que ganharíamos, uns dois meses antes da festa. Neles estava o meu futuro nome de casada. Fiquei sem jeito e me rendi.”
Ela conta que, quando se casou, era muito normal a mulher adotar o nome do marido. “Era quase automático, por isso também fiquei sem jeito, com medo de ferir suscetibilidades”, conta. Alguns meses após o casamento, eu resolvi que não queria mesmo ter adotado o nome de casada e preparei, no escritório em que trabalhava como advogada, uma petição ao juiz para retificar o meu nome, para voltar a usar o nome de solteira. Meu chefe disse que era um absurdo e que meu marido e sua família iriam ficar muito desapontados. De novo me rendi.”
O tempo passou e com os seus dois filhos ela se acostumou a ter o mesmo nome deles. “Era bom para viajar”, diz. “Com o divórcio, voltei a usar o meu nome de solteira. É um alívio, não porque tenha alguma coisa contra o nome da família do meu ex-marido. O nome é sonoro, bonito, mas simplesmente não me identificava com ele, achava estranho, principalmente quando me chamavam apenas pelo segundo sobrenome, ou seja, apenas o dele, omitindo o meu.”
O advogado Jaci Donizeti Pio Novo, de 64 anos, é um dos raros homens que adotaram o sobrenome da mulher, sem que ela acrescentasse o dele. Filho de mãe solo, ele tinha dois nomes (Jaci Donizeti), mas nenhum sobrenome, nem mesmo o da mãe. “Isso pesou muito na hora de adotar o dela”, lembra. “Ela sugeriu que, caso eu adotasse o seu sobrenome, as pessoas com o tempo não atentariam para o fato de que era o dela e isso logo deixaria de me causar constrangimento.”
Donizeti, que se casou em 1994, diz que a sugestão de sua mulher surgiu da vontade e do amor que ela sempre teve de protegê-lo. “A adoção foi um ato de amor mútuo”, diz. “Jamais foi uma exigência minha ou dela, pois se fosse assim não haveria nem mais uma relação e muito menos um casamento. A juíza que nos casou acabou tecendo muitos elogios à nossa decisão e nos disse que já havia feito algumas dezenas de casamentos e o nosso era o primeiro em que o marido adotava o sobrenome da mulher.”
Segundo a historiadora Joana Maria Pedro, pesquisadora do Instituto de Estudos de Gênero (IEG) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), o aumento do número de mulheres que resolvem não adotar o sobrenome do marido se deve às mudanças ocorridas a partir do fim do século XX, com o fortalecimento do movimento de mulheres e os direitos que elas passaram a ter. Entre eles, receber o salário (antes era comum que o pai ou marido recebessem o pagamento da mulher), ter direito a herança, além de poder estudar e ter uma profissão.
Para as brasileiras casadas no civil, o direito de poder trabalhar fora de casa, sem precisar da autorização do marido, só veio em 1962, com o Estatuto da Mulher Casada. “A concentração de pessoas nas áreas urbanas, o aparecimento de métodos contraceptivos mais eficientes, que permitem controlar o número de filhos, a entrada das jovens nas escolas de nível médio e superior, a busca por uma carreira, tudo isso trouxe – especialmente entre as mulheres das camadas médias urbanas –, o questionamento sobre o uso do sobrenome do marido”, explica. Com tudo isso, explica, as relações entre homens e mulheres mudaram, especialmente nas áreas urbanas. Elas não querem mais ser reconhecidas apenas como esposa de alguém. E o nome é parte desse reconhecimento da própria identidade.
Fonte: Revista Piauí