CPC: questões prejudiciais e coisa julgada
Questões prejudiciais e coisa julgada
Eduardo Talamini
Agora, o § 1.º do art. 503 do CPC/15 prevê que, dentro de certas condições, a coisa julgada incide sobre a resolução de questão prejudicial, decidida expressa e incidentemente no processo.
quarta-feira, 16 de março de 2016
1. Limitação da coisa julgada ao dispositivo sentencial
A coisa julgada atinge apenas as questões decididas em caráter principal, como dispositivo da sentença ou da interlocutória de mérito, e não a motivação sentencial (CPC, art. 504).
Somente os comandos que acolhem ou rejeitam os pedidos fazem coisa julgada – ou, no caso da sentença que nega a admissibilidade da tutela jurisdicional (art. 485), apenas o comando que põe fim à fase cognitiva ou à execução faz coisa julgada formal. A rigor, tais comandos devem constar da parte dispositiva do pronunciamento decisório. Mas, se por um defeito de técnica redacional, o comando estiver inserido na parte da sentença dedicada à motivação, ele fará coisa julgada mesmo assim. Ou seja, ele não deixará de ser comando – e de fazer coisa julgada – só porque foi formalmente mal colocado no texto da sentença.
Os argumentos jurídicos, desenvolvidos pelo julgador para fundamentar sua conclusão, não fazem coisa julgada. Também não faz coisa julgada a versão dos fatos reputada correta pelo juiz, ao fundamentar a sentença (art. 504, II). Ainda que a motivação da sentença contenha argumentos que seriam em tese perfeitamente aproveitáveis para a solução de outro objeto processual (pedido e causa de pedir), não será ela vinculante para o juiz que venha a julgar essa outra ação. Esse é o sentido do enunciado da Súmula 239 do STF (“Decisão que declara indevida a cobrança do imposto em determinado exercício não faz coisa julgada em relação aos posteriores”).
Por vezes a exata identificação do sentido e alcance do comando – e, portanto, da coisa julgada – depende da consideração dos fundamentos da decisão (por exemplo, determinar o exato alcance de um julgamento parcial de procedência, quando o decisum está mal redigido). Mesmo nesse caso, os fundamentos não farão, em si mesmos, coisa julgada.
2. Questões prejudiciais: definição
Qualificam-se como prejudiciais as questões atinentes à existência, inexistência ou modo de ser de uma relação ou situação jurídica que, embora sem constituir propriamente o objeto da pretensão formulada (mérito da causa), são relevantes para a solução desse mérito (por exemplo, relação de filiação, na ação de alimentos ou de petição de herança; validade do contrato na ação de cobrança de uma de suas parcelas). São inconfundíveis com as questões preliminares, que concernem à existência, eficácia e validade do processo. As preliminares podem conduzir apenas à impossibilidade do julgamento do mérito, não contribuindo para a sua solução (são questões meramente processuais). As questões prejudiciais repercutem sobre o mérito da causa.
3. Coisa julgada da resolução de questões prejudiciais
No CPC/73, previa-se que a resolução de questões prejudiciais, que não houvessem sido objeto de pedido expresso da parte, nem na demanda inicial, nem em ação declaratória incidental (que era uma ação que se permitia propor incidentalmente no processo), não faria coisa julgada. Tome-se um exemplo: o réu alegava que era filho do falecido (de cujus), contudo não pedia uma sentença declaratória de filiação, mas apenas que se declarasse que ele tinha direito a uma parte da herança e se condenasse seus supostos irmãos a lhe entregar o seu quinhão de tal herança (ação de petição de herança). Os réus, seus supostos irmãos, ao contestar a ação, negavam tal condição. No CPC/73, a questão da filiação seria, nessa hipótese, examinada apenas na fundamentação da sentença e não faria coisa julgada. O decisum (dispositivo) se limitaria ao pedido de recebimento de uma parte da herança. Isso significava que, se tal ação (de pedido de herança) fosse julgada improcedente, por reputar o juiz, na motivação da sentença, que o autor não era filho do falecido, a questão da herança faria coisa julgada material (porque resolvida na parte decisória), mas a inexistência da filiação não seria objeto de coisa julgada (porque enfrentada apenas na fundamentação da sentença). Assim, se, depois disso, esse mesmo autor viesse a propor outra ação, contra os mesmos réus – pedindo alimentos dos seus pretensos irmãos – o juiz poderia, nesse outro processo, reconhecer a relação de filiação e impor aos réus o dever de pagar alimentos. Era esse o significado do art. 469, III, do CPC/73. Na vigência daquele diploma, para que a questão da filiação fizesse coisa julgada já naquele primeiro processo, seria necessário o ajuizamento de uma ação declaratória incidental (CPC/73, art. 470).
Agora, o § 1.º do art. 503 do CPC/15 prevê que, dentro de certas condições, a coisa julgada incide sobre a resolução de questão prejudicial, decidida expressa e incidentemente no processo.
Tal regra não constitui exceção à norma do art. 504 do CPC. A decisão expressa da questão prejudicial, uma vez observados os pressupostos dos §§ 1.º e 2.º, faz coisa julgada precisamente porque se trata de um comando sentencial, e não simples fundamentação. Não só recebe a autoridade de um decisum (coisa julgada) como produz todos os efeitos de um decisum. No exemplo acima dado, suponha-se que, na ação de petição de herança, houve o reconhecimento da filiação. Desde que preenchidos os pressupostos a seguir examinados, esse reconhecimento fará coisa julgada e terá a eficácia de um comando sentencial declaratório da filiação: poderá ser levado a registro no cartório competente etc.
Não se trata de exceção à regra que limita a coisa julgada ao dispositivo da decisão de mérito. A hipótese constitui exceção, isso sim, à norma que permite que o juiz apenas decida as pretensões efetivamente postas pelas partes. Nesse caso, basta que se estabeleça o efetivo contraditório sobre questão prejudicial do âmbito de competência absoluta do juízo, para que o juiz sobre ela emita decisum. Ou seja, em contraste com o CPC/73, a novidade não está em estender-se a coisa julgada à fundamentação, mas sim em dispensar-se a ação declaratória incidental para que o juiz possa proferir comando sobre a questão prejudicial.
Retomando o exemplo acima dado: se, para julgar a ação de petição de herança, o juiz submete a debate e instrução probatória a questão da filiação do autor, a conclusão que ele vier a tomar a respeito dessa questão, desde que observadas determinadas condições (a seguir examinadas), não constituirá simples parte da fundamentação da sentença, mas sim dispositivo (comando) decisório – que também será acobertado pela coisa julgada.
4. Extinção da ação declaratória incidental, no CPC/15, como figura geral
Por essas razões, o CPC/15 não prevê mais, como instituto de alcance geral, a ação declaratória incidental para a solução de questões prejudiciais. Em regra, ela não é mais necessária. Hipótese dessa ação permanece prevista especificamente para a declaração de falsidade de documento (CPC, art. 433).
5. Pressuposto necessário para o julgamento da lide
Se a questão nem sequer for pressuposto para o julgamento do mérito, ela não se caracteriza como prejudicial. Não poderá ser objeto de comando sentencial nem consequentemente ter sua resolução acobertada pela coisa julgada (art. 503, § 1.º, I). Aliás, nessa hipótese, ela não precisa ser solucionada nem mesmo na fundamentação, dada sua irrelevância para a solução da lide.
Mas nesse ponto põe-se controvérsia. Há duas correntes de interpretação do inc. I do § 1.º do art. 503.
Para uma delas, apenas fica excluída a possibilidade de fazer coisa julgada a resolução da questão que nem mesmo em tese é prejudicial para a solução da causa.
Para outra, não basta isso. Seria indispensável que no caso concreto a resolução da questão prejudicial fosse o fator único e determinante da solução dada à causa.
A exemplificação permite compreender melhor as duas concepções. Fiquemos com o exemplo que já vinha sendo utilizado. Imagine-se que na ação de petição de herança antes referida, o juiz conclui que o autor é filho do de cujus, mas também constata que nenhum bem foi deixado pelo falecido para ser herdado – e por isso julga improcedente o pedido de herança.
Para a primeira corrente interpretativa, a resolução da questão da filiação faz coisa julgada material nesse caso (desde que observados os demais requisitos, a seguir examinados), por ser ela prejudicial ao cabimento da herança.
Para a segunda corrente, como a improcedência não derivou da ausência de filiação (e sim da ausência de bens), a definição dela não seria objeto de um decisum e não faria coisa julgada material. Os adeptos dessa concepção defendem que, para evitar que isso ocorresse, a parte interessada deveria ajuizar oportunamente uma ação declaratória incidental. Vale dizer, para eles, a despeito do absoluto silêncio da lei quanto a tal instituto (referido apenas para hipótese muito específica, na arguição de falsidade), continuaria existindo a ação declaratória incidental. E, para não correr riscos, a parte deveria oportunamente ajuizá-la.
Essa segunda concepção é bastante plausível em termos lógicos. Mas conduz a resultados práticos que não parecem ser os pretendidos pelo sistema estabelecido pelo CPC/15. Apenas ao final do processo, saber-se-ia se a questão prejudicial faria coisa julgada material. Para não correr o risco de a questão prejudicial não fazer coisa julgada, a parte continuaria tendo de ajuizar ação declaratória incidental. Primeiro, é muito discutível que continue existindo ação declaratória incidental. A propositura de uma nova ação, no processo já em curso, é uma exceção à estabilidade da demanda – e, como tal, depende de expressa autorização normativa. De resto, cairiam por terra os evidentes propósitos da atribuição de coisa julgada à resolução de questões prejudiciais: economia processual e simplificação procedimental. Aliás, paradoxalmente, ficaria mais complicado do que era antes (quando, afinal, se houvesse declaratória incidental, haveria coisa julgada da questão prejudicial; se não houvesse, não haveria: agora, a valer a tese ora criticada, haveria todo um jogo de combinações...).
6. Contraditório prévio e questão prejudicial
Para que a decisão sobre a questão prejudicial revista-se de coisa julgada, é imprescindível que haja possibilidade plena de contraditório prévio a respeito dela. Vale dizer, não basta o fato de poder-se subsequentemente recorrer da decisão. Há de se permitir o debate e instrução probatória sobre a questão, para que só depois seja decidida.
7. Contraditório efetivo e questão prejudicial
O contraditório também deve ser “efetivo”. Tal pressuposto tem de ser devidamente compreendido. É preciso que a questão seja posta no processo e fique claro para as partes que ela é relevante para a solução da lide e receberá uma decisão expressa. Cumpre ao juiz – em respeito aos deveres de debate e prevenção, ínsitos aos princípios do contraditório e da cooperação (CF, art. 5.º, LV; CPC, arts. 6.º, 9.º e 10) – advertir as partes quanto a isso. Em princípio, o saneamento do processo é a ocasião oportuna para tanto (CPC, art. 357).
Por um lado, mesmo que o juiz não cumpra esse dever de advertência, se as partes efetivamente debaterem a questão, está preenchido esse requisito para a incidência da coisa julgada.
Por outro lado, uma vez posta claramente a existência da questão prejudicial, e sendo dada às partes a oportunidade de instrução jurídica e probatória, está também preenchido o requisito. A circunstância de uma ou ambas as partes, uma vez devidamente cientes de que a questão prejudicial está posta, não se dedicar à sua instrução jurídica e fática, em regra, não obstará que a decisão expressa do juiz sobre tal questão tenha autoridade de coisa julgada. No processo civil, vigora o princípio da disponibilidade do contraditório.
8. Revelia e não formação da questão prejudicial
Se houver revelia, a decisão sobre ponto prejudicial à solução de mérito não fará coisa julgada.
A regra expressa na parte final do inc. II do § 1.º do art. 503 indica a preocupação do legislador em evitar que se forme contra o revel coisa julgada relativamente a uma pretensão acerca da qual ele não foi citado. Mas tal norma até seria dispensável: ponto é a afirmação (sobre fato e [ou] direito; sobre aspecto processual ou de mérito...) que uma parte faz no processo; se o ponto é impugnado pelo adversário, ele torna-se uma questão. Se há revelia, a questão prejudicial nem sequer se constitui.
9. Cognição plena e questão prejudicial
Se existem restrições probatórias à investigação da questão prejudicial ou por qualquer outra razão a profundidade da sua cognição é limitada, a decisão acerca dela não fará coisa julgada. A norma do § 2.º do art. 503 nada mais é do que expressão da incompatibilidade entre cognição superficial e coisa julgada.
10. Competência absoluta para a questão prejudicial
O art. 503, § 1.º, III, estabelece que o juízo precisa deter competência em razão da matéria e da pessoa para resolver a questão prejudicial como questão principal, para que sobre ela incida a coisa julgada.
Mas a exigência de que o juiz detenha competência material (i.e., competência absoluta) para julgar em caráter principal a questão prejudicial é apenas requisito para a incidência da coisa julgada, e não para que ele possa dirimir a questão. O juiz estatal civil sempre tem o poder de resolver apenas na fundamentação questões prejudiciais para as quais não teria competência de julgamento em caráter principal. Por exemplo, está apto a resolver a questão relativa à existência de um contrato de trabalho que seja prejudicial ao julgamento do mérito, embora não possa emitir a respeito uma decisão expressa apta a fazer coisa julgada material.
11. Decisão expressa sobre a questão prejudicial
Para haver coisa julgada é indispensável decisão expressa do juiz sobre a questão prejudicial. Não basta que ela possa ser intuída, dessumida ou pressuposta a partir da decisão dada ao mérito. É preciso que haja efetivo enfrentamento da questão prejudicial pelo juiz.
12. Desnecessidade de inserção formal na parte dispositiva da sentença
Pouco importa que esse comando resolutório da questão prejudicial esteja formalmente inserido na motivação ou na parte dispositiva da sentença ou da interlocutória de mérito. Respeitados os pressupostos dos §§ 1.º e 2.º, ele fará coisa julgada. A situação não é distinta da que se tem quando o decisum da própria pretensão principal formulada pela parte é, por deficiência formal da sentença, diluído na fundamentação. Ele permanecerá sendo decisum, produzirá todos os seus efeitos e fará coisa julgada.
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*Eduardo Talamini é advogado, sócio do escritório Justen, Pereira, Oliveira & Talamini - Advogados Associados. Livre-docente em Direito Processual (USP). Mestre e doutor (USP). Professor da UFPR.
Extraído de Migalhas