Uma parceria pela Justiça
27/02/2012 09:31
26/02/2012 - 08h00
ESPECIAL
STJ e Ministério Público, uma parceria pela Justiça
Nem Judiciário, nem Executivo. O Ministério Público (MP) é definido na Constituição como um órgão que exerce função essencial à Justiça. O Parquet – como a instituição também é conhecida – atua na fiscalização da legalidade, na defesa do interesse público e dos direitos difusos do conjunto da sociedade, como os direitos ambientais e de consumidores; na promoção das ações penais, na defesa dos menores e em muitas outras áreas. A relação entre o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Parquet é ainda mais profunda do que transparece nos processos: um sexto das vagas de ministro é reservada para membros do MP.
A ministra Maria Isabel Gallotti, que tomou posse no STJ há cerca de um ano e meio, atuou no MP por 12 anos e destaca que a instituição não deve ser confundida com um quarto poder. “O Ministério Público exerce um papel singular, porque tem que ser imparcial e ter uma postura equidistante entre a magistratura e a advocacia. Ele seria um advogado da sociedade, pois não cuida de interesses particulares de indivíduos”, explicou.
Com funções tão importantes e uma área de atuação tão ampla, em várias ocasiões o STJ teve que ser acionado para definir os parâmetros nos quais o MP deve atuar.
Legitimidade ativa
Entre as demandas mais comuns relacionadas ao MP estão as que procuram determinar os limites de sua legitimidade para propor ações. No Recurso Especial (REsp) 1.230.431, relatado pela ministra Nancy Andrighi, ficou decidido que a instituição pode atuar em ações falimentares, ainda que tal intervenção não seja exigida em lei. Discutindo a falência da companhia área Transbrasil, determinou-se que o MP se manifestasse sobre embargos opostos pela massa falida. Os advogados da empresa aérea alegaram que a intervenção do Parquet só seria possível em ação falimentar que não fosse mais sujeita a efeito suspensivo.
Porém, a ministra Andrighi apontou que a intervenção do MP só poderia ser afastada se ficasse comprovado prejuízo a uma das partes. Ela afirmou que, com a mudança da Lei de Falências, a atuação do MP não é mais obrigatória, mas pode ser facultada se for “necessária ao interesse da Justiça”. Para a magistrada, essa atuação poderia até mesmo beneficiar a própria Transbrasil, pois o MP tem a obrigação de manter a lisura do processo falimentar.
Em outro processo, ficou decidido que o Parquet pode, por iniciativa própria, mover ação por lesão corporal contra a mulher no âmbito doméstico, com base na Lei Maria da Penha. A Sexta Turma do Tribunal concluiu que essa violência doméstica é um delito de ação penal pública incondicionada, ou seja, não exige que a vítima peça a investigação ou o ajuizamento da ação penal, permitindo a ação independente do MP. Isso ocorreu no julgamento do Habeas Corpus (HC) 96.992, impetrado a favor de um marido acusado de agressão, com a alegação de que a mulher não desejaria prosseguir com a ação.
A Sexta Turma admitiu que a questão era polêmica, mas a maioria do órgão julgador entendeu que a Lei Maria da Penha tornou o crime de lesão corporal no ambiente doméstico qualificado, com o que deixou de ser um delito de menor poder ofensivo. Para a Turma, os agressores devem ter consciência de que responderão a um processo, sendo essencial a atuação do MP.
A ministra Gallotti aponta que o normal é que, quando a ação se relaciona a direitos indisponíveis, ou seja, aqueles dos quais o cidadão não pode abrir mão, ou que ele não pode alienar, essa competência é reconhecida. “Por exemplo, o direito à vida e o direito à saúde são indisponíveis. Os direitos difusos, que não têm um titular específico, como os ligados ao meio ambiente, também são de competência do MP”, completou.
Poder de investigação
A mesma Sexta Turma decidiu de modo unânime que, nas ações penais públicas, o MP tem autoridade para investigar. Foi o que ocorreu no julgamento do HC 60.976, no qual o pedido de trancamento de ação penal de um delegado acusado de extorsão foi negado. O policial simularia prisões em Vila Velha (ES), depois as vítimas eram encaminhados à Delegacia de Segurança Patrimonial em Vitória, capital do estado. Lá seria exigido dinheiro para liberá-las.
No recurso ao STJ, a defesa argumentou que a denúncia se baseou apenas em investigações feitas pelo Ministério Público e, portanto, seria irregular. Porém, Og Fernandes, o ministro relator, entendeu de modo diverso, asseverando que o MP, como titular da ação penal, pode fazer investigações e efetuar a colheita de provas. Seria vedado apenas ao MP realizar ou presidir o inquérito policial. “Esse é o típico caso em que a atuação unilateral do MP na investigação é indispensável, já que se trata de crime praticado no âmbito da própria Polícia Civil”, reforçou.
Na mesma linha foi a decisão do ministro Napoleão Nunes Maia Filho no HC 171.116. O ministro declarou que o MP pode instaurar procedimentos administrativos ou diligências investigativas. “Pode inclusive atuar prescindindo da instauração do inquérito policial”, esclareceu.
Contra o corporativismo
Essa afirmação dos poderes investigativos do MP é vista como positiva por seus membros para dar efetividade às leis, especialmente na área penal. A subprocuradora-geral da República Raquel Elias Ferreira Dodge, coordenadora da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal (MPF), afirma que a Constituição não instituiu o monopólio da investigação para nenhum órgão e que, muitas vezes, para alcançar a verdade real do fato, o único caminho é a investigação pelo Parquet.
Ela cita como exemplo casos que envolvem corrupção ou tortura praticadas pela polícia. “Não é difícil intuir que as corporações tendem a adotar medidas protetivas para seus membros. Nessa situação é preciso que um órgão externo venha proceder a investigação”, opinou. Ela acrescenta que o controle da atividade policial é exercido pelo MP. Casos de corrupção de políticos poderosos na localidade também podem exigir a atuação do órgão, pois muitas vezes as autoridades policiais não têm condições de atuar.
Um exemplo foi o voto da ministra Laurita Vaz no REsp 945.556, em que um ex-deputado estadual de Minas Gerais foi acusado de formar quadrilha para fraudar licitações públicas. A defesa do réu afirmou que a denúncia contra ele seria irregular por só se basear nas investigações do MP. Isso, sustentaram, desrespeitaria os artigos 4º do Código de Processo Penal (CPP) e 21 e 29 da Lei 8.625/93 (Lei Orgânica do Ministério Público).
A ministra relatora, porém, destacou que os artigos 129 da Constituição e 8º da Lei Complementar 8.625 autorizam o MP a proceder à colheita de elementos de convicção a fim de elucidar crimes. Além disso, acrescentou a ministra Vaz, o Supremo Tribunal Federal (STF) adotou o entendimento de que o órgão ministerial pode investigar em circunstâncias especiais, como no caso de envolvimento de autoridades policiais ou políticas.
A subprocuradora-geral Raquel Dodge destacou outro caso de atuação direta do Parquet no combate à corrupção. No Recurso em Mandado de Segurança (RMS) 33.392, o MP de Pernambuco pretendia que o Tribunal de Contas do estado fornecesse documentos para investigar irregularidades nesse mesmo tribunal. O MPPE afirmou ter o direito líquido e certo de requisitar diretamente documentos que não tivessem algum tipo de sigilo legal para instruir procedimento investigativo.
O ministro Benedito Gonçalves, que relatou o recurso, apontou que o artigo 129 da Constituição fixou que a requisição de documentos para instrução de investigações é uma das prerrogativas do órgão. O artigo 8º da Lei 7.347/85, que regula a ação civil pública, tem o mesmo teor. Ele também salientou que não cabe ao Judiciário questionar a requisição, sendo possível discutir os procedimentos posteriores instaurados pelo MP.
Limitações
Em outras ocasiões, o STJ impôs algumas restrições ao MP e aos seus membros. Algumas matérias chegaram até mesmo a ser sumuladas, como ocorreu na Súmula 470, que estabeleceu que o Parquet não tem legitimidade para pedir, em ação civil pública, a indenização do DPVAT (Seguro Obrigatório de Veículos Automotores Terrestres) em benefício do segurado. A súmula foi proposta pelo ministro João Otávio de Noronha.
O MP de Goiás ajuizou ação em favor de várias vítimas de acidentes de trânsito que receberam indenizações inferiores ao previsto em lei. O ministro Noronha destacou que o Parquet defende direitos individuais indisponíveis e homogêneos. Entretanto, ele ponderou, o fato de o seguro ser obrigatório e atingir todos os proprietários de veículos não configura nem indivisibilidade nem indisponibilidade. A questão não teria, na visão do ministro Noronha, a relevância social necessária para permitir uma ação coletiva proposta pelo órgão.
Segundo a ministra Gallotti, o STJ entende que contestar o pagamento de impostos, contribuições e taxas é de interesse meramente individual. “Já é uma jurisprudência muito antiga que o MP não pode ajuizar ação em prol de contribuintes que questionam a constitucionalidade ou legalidade de um determinado tributo”, ressaltou.
Uma limitação imposta ao MP foi a vedação do exercício da advocacia por assessores jurídicos do órgão, decidida pela Primeira Turma do STJ no REsp 997.714. O ministro Benedito Gonçalves, relator da matéria, observou que o Parquet tem alta relevância para a atividade jurisdicional e ampla independência. Seus servidores têm acesso aos processos judiciais e detêm informações privilegiadas, de modo similar aos servidores do Judiciário.
Para o ministro Gonçalves, não impor a mesma vedação ao exercício da advocacia já imposta aos servidores da Justiça seria tratar de forma desigual os que estão em igualdade de condições. Por fim, ele observou que o próprio Conselho Nacional do Ministério Público editou a Resolução 27, que vedou a advocacia para seus servidores efetivos e comissionados.
A questão da equidade também foi a base da decisão da Primeira Seção do STJ no Embargo de Divergência em REsp (EREsp) 895.530, determinando que o MP não recebesse honorários de sucumbência (pagos pela parte perdedora ao advogado da parte que venceu). Eliana Calmon, ministra relatora do recurso, entendeu que o órgão tem a proteção legal de não pagar a sucumbência, até mesmo para não inibir sua atuação na defesa da sociedade. Logo, não seria legítimo que ele recebesse tais honorários quando saísse vencedor.
A ministra Calmon reconheceu que havia divergência na questão, mas que a jurisprudência majoritária do STJ firmou-se no sentido de que o MP não deve receber sucumbência. Argumentou, por fim, que os custos da instituição são cobertos pelos impostos pagos por toda a sociedade para a defesa dos seus interesses.
Superior Tribunal de Justiça (STJ)