Brasília: mudança da capital completa 55 anos
Foto: Arquivo Público do DF
Adversários de JK tentaram impedir transferência da capital para Brasília
Ricardo Westin | 17/04/2015, 09h57 - ATUALIZADO EM 17/04/2015, 11h00
O senador João Villas Boas (UDN-MT) estava inconformado. Quando faltavam apenas duas semanas para a transferência da capital federal do Rio de Janeiro para Brasília, marcada para 21 de abril de 1960, ele subiu à tribuna do Palácio Monroe, a sede do Senado, no Rio, para argumentar que o presidente Juscelino Kubitschek cometia um erro grave ao inaugurar uma cidade ainda em obras:
— O senhor presidente está distribuindo convites até a Sua Santidade o papa e à rainha da Inglaterra para virem assistir a quê? A andaimes, apartamentos em construção e ruas poeirentas, que só atravessá-las nos deixa a roupa marrom. Isso na época da seca. Quando chove, é preciso tirar os sapatos e suspender a calça até o joelho para atravessar o lamaçal. A cidade também não tem luz nem esgoto. É grande o ridículo da parte de nosso governo.
Nesta terça-feira, dia 21, a mudança da capital completa 55 anos. Documentos históricos guardados no Arquivo do Senado mostram que, às vésperas da transferência, o clima no Plenário era de excitação. De um lado, a oposição (encabeçada pela UDN) insistentemente ocupava a tribuna para apontar cada falha de Brasília e exigir o adiamento da inauguração até que os políticos e os funcionários públicos encontrassem na cidade condições satisfatórias de habitação. Do outro lado, a base governista (liderada pela aliança PSD-PTB) se derramava em elogios a JK pela façanha de erguer uma cidade do nada, no vazio do Planalto Central, em apenas quatro anos.
No mesmo pronunciamento, Villas Boas afirmou que a falta de hotéis em Brasília forçaria muitos dos participantes dos festejos inaugurais a se hospedarem em Goiânia e até mesmo em Araxá (MG). O senador oposicionista Mem de Sá (PL-RS) apoiou o colega. Ele, que semanas antes havia inspecionado a nova capital, disse que nem o luxuoso Brasília Palace Hotel, aberto em 1958, era digno de receber os convidados estrangeiros de JK:
— Quando lá estive, o hotel mostrava em inúmeros pontos as marcas da imprudência administrativa pela ânsia da construção em tempo recorde. Já eram inúmeros os lugares nos forros e nos tetos em que as infiltrações e a umidade faziam com que começassem a cair os revestimentos, que, de resto, são precários, de segunda e de terceira qualidade.
JK vinha inaugurando com pompa e circunstância cada edifício que ficava pronto. O objetivo era convencer o Brasil de que a transferência se daria, sim, em 21 de abril, conforme mandava o cronograma original.
— Em 21 de abril, pedir-se-á emprestado um cadáver a Goiânia para a inauguração do cemitério de Brasília — alfinetou Mem de Sá, arrancando gargalhadas dos senadores.
Lobão da Silveira (PSD-PA) correu para defender o governo. Ele disse ter certeza de que Brasília estaria completamente em ordem dentro de poucos dias:
— Em Brasília, trabalham-se 24 horas por dia e multiplicam-se os dias por três.
Daniel Krieger (UDN-RS) rebateu:
— E também se gasta por três.
Outro argumento dos opositores era que o governo passaria um bom tempo livre do controle popular, já que a nova capital ainda não oferecia a infraestrutura básica de telecomunicações às emissoras de rádio e TV.
Apartamento em obras
A mudança da capital do Rio para o centro do país já estava decidida desde o início da República. Atendendo uma determinação da Constituição de 1891, o presidente Floriano Peixoto criou no ano seguinte uma comissão que explorou o Planalto Central e apontou a área do estado de Goiás que deveria abrigar a nova sede do governo.
Aliado de JK, o senador Lima Teixeira (PTB-BA) apresentou o principal argumento dos chamados mudancistas:
— Com a transferência da capital, levaremos um pouco do progresso do litoral para o interior do Brasil. Não é possível que continue o Brasil com duas zonas distintas: uma subdesenvolvida e outra próspera. Quando se concretizar a transferência da capital para o coração do Brasil, aqueles que aqui se utilizaram da tribuna para combatê-la hão de arrepender-se, diante das possibilidades econômicas que impulsionarão o país.
O canteiro de obras do Palácio da Alvorada: capital foi inaugurada em abril de 1960, ainda incompleta
Mesmo fazendo parte da base governista, o senador Caiado de Castro (PTB-DF) não escondia sua irritação com o ritmo das obras. Ele pediu a palavra para reclamar que seu apartamento funcional em Brasília ainda não estava pronto:
— Não sou homem de comodidades. Nasci no Distrito Federal [a atual cidade do Rio], mas vivi no sertão. Como soldado, já dormi até em barraca. Mas, como senador da República, posso morar numa barraca em Brasília? Se receber as chaves do apartamento, irei para a nova capital. Se não, permanecerei aqui, na Cidade Maravilhosa, aguardando que termine a construção do edifício que terei que habitar.
Com a transferência, a cidade do Rio deixaria de ser o Distrito Federal e se transformaria no estado da Guanabara. Caiado, que era carioca, disse que seus conterrâneos estavam felizes com a mudança, pois deixariam de ter um prefeito nomeado pelo presidente da República:
— De agora em diante, seremos donos do nosso nariz. Poderemos dirigir o estado com aqueles que tiverem a ventura de merecer a confiança do povo [pelo voto]. Hoje, como se sabe, quem manda é o governo federal.
O Congresso Nacional teve papel decisivo na criação de Brasília. Foram os senadores e deputados que aprovaram as leis propostas por JK, incluindo as que liberaram os recursos financeiros necessários para as obras. Explica o historiador e consultor legislativo do Senado Marcos Magalhães, autor de um estudo sobre a mudança da capital na perspectiva do Congresso:
— A oposição não se empenhou em derrubar os projetos relativos a Brasília porque acreditava que a nova capital era uma utopia e representaria o suicídio político de JK. Os projetos acabaram sendo aprovados com facilidade. No final, quando a nova capital já era irreversível, a oposição se mobilizou para criar CPI e adiar a inauguração. No entanto, nada disso adiantou.
Novacap e Velhacap
Assim, com repiques de sinos, missas, coquetéis, jantares e bailes, JK cumpriu sua promessa e inaugurou Brasília no feriado de Tiradentes. A derradeira sessão do Palácio Monroe ocorreu na tarde de 14 de abril, uma semana antes dos festejos. Cheios de nostalgia, os senadores se despediram do Rio.
— Estas cadeiras que ocupamos vagas ficarão para todo o sempre — discursou Argemiro de Figueiredo (PTB-PB). — Não sairemos daqui com a fleuma intangível dos ingleses. Sairemos como latinos, arrebatados de emoções. Os nossos discursos, os debates calorosos, os pequenos incidentes, o rumor dos nossos passos, subindo e descendo os degraus deste recinto, este teto sóbrio e nobre, estas colunas romanas, a agitação dos taquígrafos, a curiosidade indiscreta dos jornalistas, o ruído dos tímpanos, tudo que lembramos transmuda-se em saudades tão intensas que nos levam a dizer que esta Casa, ao cerrar as suas portas, guardará também alguma coisa de nossa própria vida.
O senador Jorge Maynard (PSP-SE) também se emocionou:
— Não podemos esconder nem dissimular as saudades com que todos deixamos a terra carioca. Mas o interesse maior do Brasil exige que a deixemos e o fazemos certos de que estamos praticando um ato de sadio patriotismo. O Rio de Janeiro ficará para sempre nos nossos corações e dele levaremos as mais gratas recordações. O Brasil nunca esquecerá que aqui pulsou durante séculos a alma da nação brasileira.
Guido Mondin (PRP-RS) citou os apelidos que Brasília e o Rio ganharam naquela época — Novacap (nova capital) e Velhacap (velha capital):
— Não me conformo quando se referem ao Rio de Janeiro chamando-o de Velhacap. Não! Ninguém lhe tirará mais a situação que o tempo lhe deu, transformando esta ainda capital de nossa pátria numa das mais belas cidades do mundo, a nossa Belacap. Brasília há de ser agora o cérebro desta nação, mas o Rio de Janeiro será sempre o coração da pátria.
No meio de todo aquele frenesi, o senador Affonso Arinos (UDN-DF) advertiu que ninguém havia se preocupado com o busto de Ruy Barbosa que adornava o Plenário. A efígie do célebre jurista, que foi senador de 1890 a 1921, quase ficou para trás na mudança para Brasília. O senador Cunha Mello (PTB-AM), que presidia a sessão, avisou que a Mesa do Senado acolhia a sugestão e decidia que a imagem seria levada para a nova capital — é a mesma que hoje se encontra no Plenário do Senado.
A primeira sessão do Senado no edifício assinado por Oscar Niemeyer se realizou um dia após a inauguração da capital, em 22 de abril. Villas Boas, Mem de Sá, Krieger e Caiado, os senadores mais críticos da mudança, faltaram. Dos parlamentares presentes, o que se ouviu foram discursos ufanistas e de louvor a JK.
— Devemos a inauguração da nova capital do Brasil à vontade, à energia, à determinação e à audácia de Juscelino Kubitschek, que realizou o sonho dos nossos antepassados — afirmou Victorino Freire (PSD-MA).
O prédio do Congresso Nacional em obras no final dos anos 50: palácio assinado por Niemeyer
Alô Guimarães (PSD-PR) descreveu Brasília como “uma revolução arquitetônica, urbanística, política, social e econômica” que conduziria o país a sua “destinação gloriosa”. De acordo com Saulo Ramos (PTB-SC), a nova cidade se transformava na “sede do coração e do pulso da nacionalidade”. Novaes Filho (PL-PE) disse:
— A caminhada daqui por diante será bem mais fácil porque bem mais fácil será a distribuição dos favores, da assistência, da proteção e do amparo governamentais a todas as populações do Brasil. Nosso país certamente há de irradiar-se de Brasília, com alto sentido de justiça, sem preterições e sem preferências.
Recesso
A oposição não teve como ignorar o êxito da transferência da capital. Nos pronunciamentos da sessão inaugural, porém, os senadores da UDN buscaram tirar o protagonismo de JK e destacaram apenas os trabalhadores que tornaram a nova capital realidade. Heribaldo Vieira (UDN-SE) discursou:
— A União Democrática Nacional bate palmas ao povo, que nas suas carnes lancinantemente sofreu a fome e a miséria para que se pudesse construir Brasília no ritmo acelerado que hoje culmina com esta inauguração magnífica a que assistimos todos nós, representantes do povo e candangos que para aqui vieram edificar Brasília.
Conterrâneo e aliado de JK, Lima Guimarães (PTB-MG) fez um pronunciamento em tom de desforra:
— Aí está Brasília, desconcertando aqueles que nela não acreditavam, os incrédulos e os adversários, verdadeiros inimigos da pátria, porque não sabiam compreender que a interiorização da capital significava um passo gigantesco para o desenvolvimento econômico do país.
Attilio Vivacqua (PR-ES) pediu ao “espírito patriótico” dos senadores que perdoasse “as falhas e imperfeições inevitáveis nesta obra gigantesca”. De fato, a cidade estava inacabada. O prédio do Congresso também. Além disso, boa parte da papelada e dos funcionários do Senado não havia chegado a Brasília.
Por essa razão, 40 senadores apresentaram um requerimento para que a Casa entrasse em recesso. Freitas Cavalcanti (UDN-AL) advertiu que seria perigoso “impor-se silêncio a uma das Casas do Poder Legislativo”. A oposição, mais uma vez, foi ignorada. A primeira sessão em Brasília se encerrava e o Senado entrava em recesso. Os senadores só voltariam a se encontrar três semanas depois.
Agência Senado