Por 'moral e bons costumes', há 70 anos Dutra decretava fim dos cassinos no Brasil

Jogadores apostam num cassino do Rio: os jogos de azar tiveram vida curta no Brasil, permitidos entre 1920 e 1946 Reprodução

Por 'moral e bons costumes', há 70 anos Dutra decretava fim dos cassinos no Brasil

  

Ricardo Westin | 12/02/2016, 20h34 - ATUALIZADO EM 15/02/2016, 09h25

Nas décadas de 1930 e 1940, o Brasil viveu a era de ouro dos cassinos. No auge, funcionavam mais de 70 casas de apostas no país — do Rio, capital da República, à minúscula São Lourenço, no sul de Minas. Nos salões, homens de terno e mulheres de longo apostavam dinheiro nas roletas e nas cartas de baralho.

O fervilhante negócio dos cassinos ruiu repentinamente. Em 30 de abril de 1946, três meses depois de assumir a Presidência da República, o general Eurico Gaspar Dutra pegou o país de surpresa e, com um decreto-lei, ordenou o fim dos jogos de azar.

Às vésperas de completar 70 anos, a proibição pode ser derrubada. Diante das contas públicas no vermelho, o governo Dilma Rousseff trabalha para reabrir os cassinos e contar com os impostos incidentes sobre os jogos.

Em outubro, o ministro do Turismo, Henrique Eduardo Alves, defendeu a ideia. Em dezembro, a Comissão Especial do Desenvolvimento Nacional do Senado aprovou um projeto de lei que cria regras para a exploração dos jogos. O PLS 186/2014, do senador Ciro Nogueira (PP-PI), será analisado agora pelo Plenário e, se aprovado, vai à Câmara.

Dutra argumentou que a “tradição moral, jurídica e religiosa” do brasileiro é incompatível com os jogos, que eles são “nocivos à moral e aos bons costumes”, que os “povos cultos” não os toleram e que reprimi-los é um “imperativo da consciência universal”.

A imprensa reagiu como se ele tivesse salvado a pátria. “Não regatearemos ao general Dutra os nossos aplausos pelo corajoso, forte e benemérito decreto extinguindo a lepra do jogo”, festejou o Correio da Manhã.

Jornal do Brasil escreveu que os cassinos “fazem acreditar que os problemas da vida se resolvem não pelo trabalho e pela poupança, mas por meio da sorte e do acaso, ao capricho da roleta”.

Documentos sob a guarda do Arquivo do Senado, em Brasília, mostram que a maioria dos senadores e deputados também ficou do lado do presidente. Eles estavam na Assembleia Nacional Constituinte, incumbidos de redigir a Constituição de 1946.

— Poderá se alegar que, com o fechamento do jogo nos cassinos e nos hotéis de luxo, o turismo desaparecerá — disse o deputado Antero Leivas (PSD-RS). — Respondo que, se o Brasil depende da proliferação do jogo e do vício para ser conhecido e visitado, prefiro que sejamos eternamente desconhecidos.

Estâncias turísticas

Inclusive parlamentares da UDN, maior partido oposicionista, subiram à tribuna para elogiar a medida de Dutra, do PSD.

— Do jogo surge o desapego aos hábitos de trabalho continuado, único criador do progresso das sociedades — afirmou o deputado Soares Filho (UDN-RJ).

A Constituinte aprovou uma moção de “vivo aplauso ao Poder Executivo”. Dutra agradeceu com um telegrama, remetido ao senador Melo Viana (PSD-MG), que presidia a Constituinte.

O Brasil vinha da ditadura do Estado Novo (1937-1945), período em que o presidente Getúlio Vargas proibiu o Senado e a Câmara de funcionar e, com poderes absolutos, governou por meio de decretos-leis.

Por alguns meses — até setembro de 1946, quando a Constituição ficou pronta —, Dutra manteve do Estado Novo o poder de legislar, para que os parlamentares se dedicassem aos trabalhos constituintes. Foi por isso que o golpe contra o jogo não passou pelo Legislativo.

As “casas de tavolagem” eram proibidas desde o Império. Em 1920, o presidente Epitácio Pessoa decidiu liberar os cassinos, mas só nas estâncias balneárias, climáticas e de águas. O imposto do jogo custearia o saneamento básico no interior do Brasil.

No início do século 20, o único tipo de turismo que existia no país era o de saúde. Famílias passavam temporadas em localidades como Campos do Jordão (SP) e Petrópolis (RJ), em busca dos poderes curativos do clima da serra, ou Poços de Caldas (MG) e Águas de São Pedro (SP), atrás de banhos em águas terapêuticas. Com a liberação do jogo, passaram a ser buscadas também por seus hotéis cassinos.

A ideia do governo era que, restritos a estâncias turísticas e ligados a hotéis, os cassinos fossem frequentados pelos turistas, e não pela população local.

No início, porém, o jogo viveu na corda bamba. Ao longo dos anos 1920, os fechamentos foram tão frequentes quanto as inaugurações. O negócio foi tolhido por decisões de juízes e leis de governadores e prefeitos contrários aos jogos de azar. O próprio governo federal chegou a fechar cassinos, já que eram uma concessão que podia ser cassada a qualquer momento.

Carmen Miranda

Foi apenas com a chegada de Vargas ao poder, em 1930, que os cassinos prosperaram. O presidente baixou decretos estimulando a construção desses estabelecimentos. Os interventores que Vargas colocou no lugar dos governadores seguiram o mesmo caminho.

O imposto do jogo deixou de ir para o governo federal e passou a ser recolhido pelos municípios, o que motivou os prefeitos a ­também querer os cassinos.

A capital logo teria três grandes centros de diversão. O cassino do Copacabana Palace, que fora obrigado a fechar as portas anos antes, reabriu em 1932. O Cassino da Urca foi inaugurado em 1933. No Cassino Atlântico, a roleta começou a girar em 1935.

— Vargas fez um jogo duplo — diz o professor de Turismo Dario Paixão, da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e da Universidade Positivo. — Por um lado, ele aprovou as leis trabalhistas, para afagar a população mais pobre, que se mudava do campo para a cidade. Por outro lado, incentivou os cassinos, para ganhar também o apoio da elite.

Os cassinos não se resumiam à jogatina. Eram grandes complexos de entretenimento. Os apostadores podiam jantar no restaurante, tomar drinques no piano-bar, dançar ao som da orquestra no salão de baile e assistir a musicais no teatro.

Segundo a revista O Cruzeiro, o restaurante do hotel cassino Quitandinha, em Petrópolis, era comandado “pelo maior cozinheiro do mundo moderno, vindo do Savoy [hotel de Londres]”, e servia “120 qualidades de frios, peixes de todas as partes do mundo, aves raras e saborosas, vinhos velhos e quase extintos”.

O governo não permitia a propaganda dos jogos. O que as casas anunciavam no jornal e no rádio eram os espetáculos. Brilharam nos palcos dos cassinos desde o ator Grande Otelo e o pianista Dick Farney até o cantor e ator americano Bing Crosby e a ousada dançarina francesa Josephine Baker.

No fim dos anos 1930, Carmen Miranda era a artista mais disputada pelos cassinos do Rio. Suas luminosas apresentações na noite carioca lhe abririam caminho para o estrelato nos EUA.

Havia outras estratégias para atrair jogadores.

— O Cassino da Urca tinha um acordo com os taxistas do Rio. Sempre que um táxi desembarcava um apostador, era o cassino que pagava a corrida. E o apostador ainda ganhava uma ficha para jogar — conta o jornalista João Perdigão, coautor de O Rei da Roleta (editora Casa da Palavra), biografia do megaempresário do jogo Joaquim Rolla.

Punhalada

Um número restrito de modalidades era permitido, entre as quais a roleta, o campista, o bacará e o écarté. Os menores de 21 anos não podiam entrar.

Em 1933, a entrada num cassino do Rio custava 10 mil réis. A título de comparação, um jornal valia 300 réis.

Vargas foi derrubado em outubro de 1945. A eleição presidencial, marcada para dezembro, ficou polarizada entre o general Eurico Gaspar Dutra e o brigadeiro Eduardo Gomes.

Uma das mais enfáticas promessas eleitorais do brigadeiro foi fechar os cassinos. Ele pertencia à UDN, partido de ideais conservadores. Dutra preferiu silenciar sobre a questão. Assim, os donos dos cassinos entraram de cabeça na campanha do general, que venceu e em 31 de janeiro tomou posse. Com a derrota do brigadeiro, eles respiraram aliviados. O presidente, porém, os apunhalou pelas costas com o decreto de 30 de abril.

Na tribuna da Constituinte, o deputado Barreto Pinto (PTB-DF) contou que, quando surgiram os boatos sobre o decreto-lei, os empresários do jogo ­imediatamente se mobilizaram.

— Um deles poderei citar: o proprietário do Copacabana Palace, senhor Octávio Guinle, a quem encontrei no Palácio do Catete e outro não podia ser o motivo de sua presença ali se não o de tentar evitar o fechamento — afirmou o deputado, que poucos anos depois seria cassado por posar para O Cruzeiro trajando apenas fraque e cueca samba-canção.

Não se sabe precisamente por que Dutra decidiu parar o negócio dos cassinos. Há várias hipóteses. Segundo uma delas, a intenção era apagar os vestígios da era Vargas. O deputado Euclides Figueiredo (UDN-DF), pai do presidente João Figueiredo, descreveu os cassinos como “templos de culto do ditador”.

Diário Carioca noticiou que “as tavolagens chegaram a ser um patrimônio de toda a família Vargas”, dando a entender que só podiam funcionar porque pagavam propina ao presidente.

Outra versão é que Dutra foi persuadido por seu ministro da Justiça, Carlos Luz, que, nascido e criado no interior de Minas, tinha ojeriza aos jogos de azar.

Dona Santinha

Na véspera da proibição, O Globo publicou uma explosiva reportagem com fotos inéditas de montanhas de dinheiro sobre uma mesa do Cassino Atlântico ao fim de uma noite de apostas. Essas imagens, de acordo com outra hipótese, tiraram o ­presidente do sério.

A versão mais prosaica, porém, é que os cassinos foram fechados a pedido a primeira-dama, Carmela Dutra — chamada pelos íntimos de Dona Santinha. Carola, ela teria aderido à cruzada da Igreja Católica contra o ambiente viciado e libidinoso dos cassinos e pressionado o marido.

A polícia fez batidas em todo o país para garantir o cumprimento da lei. Foi uma verdadeira caça às bruxas. As autoridades chegaram a criar caso com o show radiofônico Cassino da Chacrinha, apresentado por Abelardo Barbosa, só por causa do nome do programa.

O decreto-lei repercutiu por várias semanas na Constituinte. Empolgado, o deputado Barreto Pinto, o mesmo que seria cassado por posar de fraque e cueca, propôs aos parlamentares que transformassem a proibição dos jogos numa cláusula da Constituição que estava em gestação:

— A proibição deve ser de natureza constitucional, evitando-se que mais cedo ou mais tarde os cassinos abram as suas portas de novo, o que já se ouve dizer.

Os parlamentares acharam um exagero e rejeitaram a emenda.

 

Agência Senado

_____________________________________________

Proibição deixou legião de desempregados, de garçons a cantores

Ricardo Westin | 12/02/2016, 20h34 - ATUALIZADO EM 15/02/2016, 09h31

Com o fechamento dos cassinos, em 1946, funcionários de inúmeras especialidades se viram da noite para o dia sem trabalho. De recepcionistas e seguranças a coreógrafos e dançarinas. De cozinheiros e garçons a músicos de orquestra e cantores. De faxineiros e eletricistas a costureiras e passadeiras. De maquiadores e cabeleireiros a cilindreiros (responsáveis pela manutenção das roletas) e crupiês (que dirigiam o jogo em cada mesa).

Estima-se que o decreto de 1946 que baniu os jogos de azar tenha deixado 55 mil brasileiros desempregados. O número, que também incluía os empregos indiretos, não era desprezível. O Brasil tinha 41 milhões de habitantes.

Os jornais estavam tão obstinados na campanha contra o jogo que conseguiram declarações até mesmo de funcionários e frequentadores de cassino paradoxalmente favoráveis à proibição.

— Não sei do que vou viver daqui por diante, mas não posso deixar de julgar acertada a medida — disse um empregado do cassino do Copacabana Palace ao Diário de Notícias. — Quem trabalha em estabelecimentos desse gênero é que está a par das inúmeras desgraças que pode causar esse maldito vício. Incautos chefes de família, na esperança de aumentar seus magros salários, atiram-se ao pano verde e acabam perdendo o que trazem. Dá pena ver aquelas fisionomias transfiguradas pelas decepções que lhes pregam a roleta e o bacará.

O mesmo jornal carioca ouviu de um apostador assíduo que “esse decreto deveria ter vindo há mais tempo”.

— O jogo constituía um sério perigo e um mal que cada vez mais se agravava — afirmou o habituê, sendo logo em seguida questionado se não sentiria falta dos cassinos. — Creio que sim, mas acabarei esquecendo. Procurarei distrair-me de outra maneira.

O drama dos desempregados chegou à Assembleia Nacional Constituinte. O deputado José Fontes Romero (PSD-DF) afirmou que o presidente Dutra, ao extinguir os jogos de azar, atendeu aos “justos reclamos da população laboriosa do Brasil”, mas acabou se esquecendo de “amparar os brasileiros que trabalhavam na casa de jogo”.

Os parlamentares chegaram a bater boca no Plenário. O deputado Rui Almeida (PTB-DF) exigiu que o governo amparasse os trabalhadores. O deputado Adelmar Rocha (UDN-PI) discordou:

— Vossa Excelência diria melhor “contraventores” em vez de “trabalhadores”.

Almeida reagiu:

— Protesto contra a atitude agressiva do colega. Contraventor é o banqueiro, é o que explora o jogo. Empregado é sempre empregado, não é contraventor.

O deputado Segadas Viana (PTB-DF) se aliou ao correligionário no repúdio ao colega da UDN:

— Contraventores não! Lá havia porteiros, músicos e muitas outras espécies de empregados, todos tão dignos como Vossa Excelência e nós.

A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), de 1943, estabelecia que, sempre que uma medida governamental extinguisse alguma atividade, o governo teria que indenizar os trabalhadores. Dutra, porém, avisou que não honraria um compromisso assumido pela ditadura do Estado Novo.

O decreto-lei que proibiu os jogos foi baixado em 30 de abril. Na semana seguinte, em 11 de maio, o governo editou um novo decreto-lei, este estabelecendo que a CLT não se aplicava ao caso particular dos cassinos. Pela segunda norma, pode-se deduzir que a proibição foi decidida às pressas, sem um debate aprofundado sobre as consequências.

Os sindicatos recorreram aos tribunais argumentando que os demitidos entre 30 de abril e 11 de maio deveriam, sim, ser indenizados pelo governo. A palavra final coube ao Supremo Tribunal Federal, que sentenciou que as dívidas trabalhistas não cabiam ao poder público, mas aos empresários. Como quase todos faliram, boa parte dos ex-funcionários jamais viu a cor do dinheiro. Casos como o do hotel Copacabana Palace, que sobreviveu sem o cassino, foram exceção.

Agência Senado

 

 

Notícias

Pode ser feita a venda de um imóvel em inventário?

Opinião Pode ser feita a venda de um imóvel em inventário? Camila da Silva Cunha 1 de dezembro de 2024, 15h28 A novidade é que, recentemente, no dia 30 de agosto de 2024, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou a Resolução nº 571/24 que, dentre outras alterações, possibilitou a autorização...

Cláusulas restritivas nas doações de imóveis

Cláusulas restritivas nas doações de imóveis Hainer Ribeiro O CC regula cláusulas restritivas como inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade, protegendo bens doados e limitando sua alienação. terça-feira, 19 de novembro de 2024 Atualizado em 18 de novembro de 2024 13:34 Cláusulas...