Proposta acende debate sobre custo do pagamento em cartão
Maioria dos clientes que pagam em dinheiro pede desconto, relata Ênio Pablo, gerente de loja de calçados em Brasília (Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado)
18/08/2014 - 22h15 Especial - Atualizado em 19/08/2014 - 12h29
Proposta acende debate sobre custo do pagamento em cartão
Um projeto de decreto legislativo do Senado abriu debate nacional sobre os cartões de crédito e débito, formas de pagamento cada vez mais presentes no dia a dia dos brasileiros. Aprovado pelos senadores no início deste mês, o PDS 31/2013 chega à Câmara dos Deputados em meio a polêmica.
A proposta, do senador Roberto Requião (PMDB-PR), torna sem efeito a Resolução 34/1989, do extinto Conselho Nacional de Defesa do Consumidor, que proíbe aos comerciantes estabelecer preço diferenciado de venda para pagamentos em cartão de crédito. O objetivo, afirma Requião, é permitir que o comércio possa dar desconto nas compras à vista, pagas em dinheiro ou outros meios, como cheque ou boleto bancário.
O senador chama atenção para a forma como são cobrados os custos de operação dos cartões, que incluem os juros do parcelamento e a chamada taxa de desconto, que no crédito fica em torno de 2,5% a 5% do valor da compra e é paga pelo comerciante às credenciadoras, como Cielo e Redecard. Tais despesas, argumenta ele, são embutidas no preço dos produtos e serviços de maneira uniforme, sem diferenciar a forma de pagamento. Assim, todos os consumidores pagam mais, mesmo aqueles que não usam cartão e optam por meios sem despesa para o lojista, como o dinheiro. O desconto, que seria uma forma de corrigir essa distorção, tem o apoio da Confederação Nacional do Comércio (CNC) e de outras organizações do setor.
A ideia, porém, foi interpretada de outra forma por entidades de defesa do consumidor. Um manifesto assinado pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), pela associação de consumidores Proteste e pela Associação Brasileira de Procons, entre outros órgãos, sustenta que a proposta é um retrocesso, pois compra em cartão deve ser considerada como à vista e a diferenciação de preços é abusiva, sob o ponto de vista legal. Afirma também que o texto pode abrir brecha para aumento nos preços, no caso de pagamento no cartão.
O autor do texto discorda:
— É exatamente o contrário, pois eu autorizo a cobrar menos. Mas isso é jogo de interesses, é o jogo dos cartões: eles proíbem que se dê desconto — reage Requião.
Insegurança
A Secretaria Nacional do Consumidor, do Ministério da Justiça, também se posicionou contra o projeto.
— Nossa preocupação é que não há garantia de diminuição de preço e corre-se o risco de haver acréscimo para cartões. Os consumidores não têm segurança de que isso não vai acontecer — explica a titular da secretaria, Juliana Pereira da Silva.
Juliana afirma que, mesmo que seja aprovado, o decreto terá pouco efeito, pois já há um entendimento consolidado dos órgãos de defesa do consumidor (baseado em notas técnicas e no Código de Defesa do Consumidor) de que não pode haver preço diferenciado. Entretanto, a secretária ressalta que a proposta tem papel importante, pois levantou um debate essencial sobre uma questão complexa que precisa ser discutida por todos os envolvidos — a secretaria, o Ministério da Fazenda, órgãos de defesa do consumidor, instituições financeiras e entidades representativas do varejo.
— Não somos insensíveis ao clamor do comércio, que tem uma demanda legítima, pois arca com altas taxas para usar esses meios. Temos consciência de que o modelo está difícil de sustentar. Mas o consumidor também paga pelo cartão e não pode ser de novo penalizado. A questão é que, nesta discussão, o principal foco não está sendo levantado: os altos custos dos pagamentos eletrônicos. As instituições financeiras têm que se posicionar em relação a isso — defende a secretária.
Uma primeira discussão acontece amanhã, em São Paulo: o assunto vai ser tratado em reunião da secretaria com os representantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, que integra Procons, Ministério Público, Defensoria Pública e entidades civis.
Mercado crescente
O mercado de cartões de pagamento cresce a um ritmo impressionante no Brasil. A expansão tem ficado em torno de 17% ao ano. Em 2013, o volume transacionado em crédito e débito chegou a R$ 853 bilhões, de acordo com a Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços (Abecs). Hoje, 50% dos brasileiros acima de 18 anos têm cartão de crédito (veja quadro).
Pagar com cartão é mais prático, mais seguro. Mas é preciso lembrar que essa expansão espetacular do setor é financiada por toda a população, porque todo produto ou serviço traz embutido o custo de operação e quem não usa acaba pagando por quem usa, frisa o advogado Cácito Esteves, da CNC. Para a confederação, que defende a liberação do desconto, a restrição ao preço diferenciado não se justifica dos pontos de vista jurídico, econômico, social ou mesmo concorrencial.
— Ela impede a concorrência entre as formas de pagamento. O dinheiro passa a ser desvantajoso, o que cria uma vantagem competitiva para a indústria do cartão. É por isso que no Brasil se pagam as maiores tarifas de intermediação do mundo. A concorrência entre as formas de pagamento é uma garantia de melhoria de serviço e redução de preço. Mas isso não existe no nosso mercado.
Esteves contesta os argumentos das entidades de defesa do consumidor de que a diferenciação de preço poderia acarretar encarecimento nas vendas no cartão. Ele explica que os custos da operação já estão inseridos nos preços e afirma que o que o comércio quer é poder vender mais barato. Diz ainda que o lojista não precisaria de “desculpa” para aumentar preço, se quisesse, pois o Brasil tem uma economia de livre precificação, em que não há dispositivos para limitar aumentos.
— Então, aumentar preço pode, mas dar desconto, não? A que ponto chegamos! Precisamos nos unir para fazer frente a quem tem poder e está se beneficiando, que são as empresas de cartão. O Senado teve a coragem de enfrentar esse tema pela óptica correta, que é a óptica do consumidor.
O consultor legislativo do Senado Paulo Springer de Freitas também acredita que abolir a restrição aumentaria a competição entre os meios de pagamento, o que poderia provocar a redução nas taxas de desconto. Essa foi uma das recomendações do estudo Mercado de Cartões de Crédito no Brasil, publicado por Springer em 2007. Outra recomendação do estudo é a regulação do setor. O consultor aborda ainda outra questão relativa ao mercado dos cartões: o chamado subsídio cruzado.
— Os consumidores que não pagam com cartão (em geral, de menor poder aquisitivo) subsidiam aqueles que utilizam o cartão em suas compras.
Essa distribuição de renda “às avessas”, em que os mais pobres subsidiam os mais ricos, é reafirmada em relatório do Banco Central sobre o setor, divulgado em 2010. O argumento também embasa a justificativa do projeto de Requião. O senador ressalta que o consumidor que compra com cartão de crédito paga mais, mas tem compensações, como os planos de milhagem. “Já os mais desafortunados economicamente, aqueles que não têm acesso a cartão de crédito, tornam-se obrigados a pagar o mesmo preço pela mesma compra, sem que lhes seja dada qualquer vantagem em troca”, argumenta.
Descontos velados
Na prática, os descontos nas compras em dinheiro já são procedimento comum no comércio, mesmo que velado.
— A grande maioria dos clientes que compra em dinheiro pede desconto e, na maior parte das vezes, conseguimos dar uma redução de 5% — relata Ênio Pablo da Cunha, gerente de loja de calçados em um shopping de Brasília.
A secretária Juliana Pereira diz que nenhum órgão de defesa do consumidor é contrário à pechincha, à negociação individual; o problema é estabelecer preços diferentes, dependendo da forma de pagamento. A CNC, porém, pondera que oferecer o desconto às vezes é um risco para o comerciante, que pode ser acusado de prática abusiva. Além disso, os próprios contratos das credenciadoras de cartões com os lojistas têm cláusulas que proíbem a redução de preço para pagamento em dinheiro.
Até agora, a Abecs não se pronunciou sobre a cobrança diferenciada. Divulgou apenas uma nota em que diz que acompanhará a análise do projeto na Câmara e frisa que o cartão exerce um papel cada vez mais importante na sociedade “como um dos pilares da inclusão financeira e do acesso ao mercado de consumo, sobretudo para as classes emergentes”. Hoje, a associação deve divulgar novo balanço do setor. A estimativa do segmento de cartões para este ano é de que o volume de transações atinja o montante histórico de R$ 1 trilhão.
Argumentos a favor e contra o preço diferenciado
A FAVOR |
CONTRA |
---|---|
• O modelo atual é injusto, porque mesmo quem compra em dinheiro ou cheque acaba pagando mais, pois o preço dos produtos já tem, embutido, o custo de operação da venda com cartão. • Os consumidores mais pobres são os mais lesados, pois têm menos acesso ao cartão de crédito e, por consequência, aos benefícios oferecidos por eles — como as milhagens de empresas aéreas. Mas como todos pagam a taxa, independentemente da forma de pagamento, os mais pobres acabam subsidiando os mais ricos. • A resolução que proíbe o preço diferenciado foi criada em 1989, época em que o mercado de cartões ainda era incipiente. Ela buscava impedir a cobrança de valores mais altos em vendas no cartão para torná-lo mais atrativo ao consumidor. Na época, a prática do preço maior na compra a prazo era defendida pelos comerciantes, pois a inflação chegava a 80% ao mês (em 1990, a inflação passou de 1.700% ao ano!). Hoje, porém, essa proibição não estaria protegendo o consumidor, e sim lesando-o. • A diferenciação de preço estimula a concorrência entre os meios de pagamento, o que é bom para o consumidor. Essa concorrência também poderia forçar o mercado de cartões a baixar as tarifas cobradas do comércio e do consumidor. • Sob o ponto de vista legal, a Resolução 34/1989 é inconstitucional, pois o conselho que a editou não tinha poder normativo, de acordo com o parecer ao PDS 31/2013 aprovado na Comissão de Constituição e Justiça. |
• O pagamento com cartão de crédito deve ser considerado pagamento à vista e quem paga com ele tem o mesmo direito a desconto. • Em vez de garantir desconto para quem paga em dinheiro, a permissão de preço diferenciado poderia ter efeito oposto a médio prazo, ocasionando sobrepreço nas compras no crédito. • O comerciante não pode transferir ao consumidor o custo da operação do cartão. O lojista é responsável pelo ônus do serviço que resolveu contratar. |
Agência Senado