Realidade “visceral”: como é a vida na cadeia superlotada

Ministro Dias Toffoli participa de realidade "visceral". FOTO: Agência CNJ

Realidade “visceral”: como é a vida na cadeia superlotada

03/12/2018 - 22h43

Ao colocar os óculos de realidade virtual, a pessoa é transportada para a cela superlotada de um presídio – 25 homens amontoados em um espaço de 3 metros por 3 metros –  e começa a compartilhar o drama daqueles presos. Durante dois minutos, é abordada por detentos que reclamam por atendimentos básicos, como uma informação sobre o seu processo ou remédio para um doente no canto da cela. Quem passou por essa experiência foi o presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, nesta segunda-feira, na noite de abertura do XII Encontro Nacional do Poder Judiciário, realizado em Foz do Iguaçu/PR.

A experiência de imersão na chamada “realidade visceral”, normalmente utilizada em jogos eletrônicos, foi usada como instrumento de sensibilização dos participantes do evento que reúne a alta administração de todos os tribunais brasileiros. No encontro de Foz do Iguaçu, o simulador da realidade prisional foi intensificado com a montagem de uma cela cenográfica, ao lado do auditório principal, cercada por grades de ferro em tamanho natural. Após passar pela instalação, o ministro convidou todos os participantes do encontro a experimentar a sensação de estar em uma cela superlotada de presos para entender qual deve ser a postura da sociedade em relação à realidade das pessoas que cumprem pena nas prisões do país.

“A experiência de usar este aparelho e estar dentro de uma cela real com outros 25 homens neste mesmo espaço é muito real, assustadora. Uma hora olhei para baixo porque reparei que estava quase pisando em uma pessoa. A dignidade do ser humano é igual para todos, inclusive para os que erram. E é nesse sentido que devemos saber separar aquilo que a sociedade deve repudiar sem confundir esse repúdio com o ser humano, que merece a dignidade na execução da pena”, afirmou o ministro. A experiência fez o ministro se lembrar de um episódio marcante na sua carreira e na vida do país, que ficou conhecido com o Massacre do Carandiru, quando 111 presos foram mortos após a Polícia Militar ser chamada para controlar uma rebelião na Casa de Detenção de São Paulo.

“Também já estive em presídio real, já fui advogado, atuei no direito criminal, no tribunal do júri de São Paulo. Visitei o Carandiru na semana seguinte ao massacre. Eu tinha um cliente que estava lá. Lembro que a família estava desesperada para saber se ele estava vivo ou não. Lembro até que, quando tive contato com ele, vi que estava cheio de ataduras nas mãos e no rosto. Lembro da expressão de alegria de viver dele ao me ver. Ele me disse: ‘demos sorte na nossa cela, só soltaram os cachorros´”, afirmou o ministro. 

Rede de Justiça Criminal
A experiência foi criada pela Rede de Justiça Criminal, um grupo composto por oito organizações não governamentais brasileiras, entre elas, o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), o Instituto Sou da Paz e o Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC). Fundada em 2010, a Rede de Justiça Criminal tem por objetivo tornar o sistema de justiça criminal mais justo e atento aos direitos e garantias fundamentais.

O vídeo faz parte da campanha “encarceramento em massa não é justiça”, que questiona a superlotação dos presídios brasileiros – atualmente há mais de 700 mil pessoas presas para apenas 371 mil vagas – , e a falta de acesso à justiça, ao trabalho, à educação e à saúde dessa população. A filmagem foi feita com a colaboração voluntária de uma agência de publicidade e, como não conseguiram autorização para filmar dentro do presídio, o ambiente da cela teve de ser recriado e encenado.

“A ideia foi se aproximar ao máximo da realidade para que não fosse uma narrativa construída”, diz Janaina Homerin, secretária executiva da Rede Justiça Criminal. A cela cenográfica foi reproduzida a partir de depoimentos de pessoas que já estiveram no cárcere e com auxílio de consultores da Pastoral Carcerária e pesquisadores do fenômeno do encarceramento em massa. Para Janaína, há uma falácia muito difundida de que o Brasil é o país da impunidade e que o encarceramento não é uma realidade. “Identificamos a necessidade de levar ao conhecimento do público uma campanha que pudesse sensibilizar as pessoas a respeito de uma realidade que elas não conhecem ou que muitas vezes preferem ignorar ou negligenciar”, diz Janaína.

Antes de fazer parte do XII Encontro Nacional do Poder Judiciário, a instalação ficou disponível por três meses na unidade do Sesc 24 de Maio, na cidade de São Paulo, ocasião em que cerca de 3 mil pessoas puderam participar da experiência. Segundo Janaína, “a ferramenta da realidade virtual tem favorecido o processo de empatia e solidariedade para uma discussão sobre o encarceramento, independentemente do crime cometido”.

Frente a frente com o protagonista
O participante principal do vídeo da realidade virtual é um egresso do sistema prisional. Emerson Martins Ferreira hoje é um psicólogo que passou quatro anos em uma prisão no regime fechado e fundou a ONG Reflexões da Liberdade. Emerson foi a primeira pessoa que o ministro Dias Toffoli viu ao sair do simulador. Paulista como Toffoli, Emerson pôde contar ao ministro suas impressões sobre o cárcere e falar um pouco de sua trajetória de vida.

Criado em Embu das Artes, no bairro Jardim Santa Luzia, em São Paulo – um bairro, como ele define, sem nenhuma opção cultural, de esportes ou lazer, a história de Emerson é como a de muitos meninos da periferia: seu pai era alcoólatra e ele teve de trabalhar desde criança. Na adolescência, deixou a escola para trabalhar como garçom. “Trabalhava 12 horas por dia para ganhar R$ 600 por mês. E não entendia como os clientes podiam gastar R$ 400 em duas horas”.

Viu a oportunidade de fazer uma renda extra vendendo drogas nas “baladas” que frequentava à noite, opção que o levou a ser preso por tráfico. Enquanto cumpria pena, graças ao apoio da família decidiu retomar os estudos e dar novo rumo à vida. “Percebi que precisava muito de educação. Vi muita gente morrendo na cadeia e eu pensava em como as pessoas se lembrariam de mim caso eu também morresse ali”. Para Emerson, há muitos fatores que levam jovens de comunidades à criminalidade como ocorreu com ele. “Um deles é que a escola muitas vezes não acolhe aquele aluno que está se comportando mal, quando aquilo é um pedido de socorro. A escola exclui, e o crime está sempre de portas abertas”, diz.

Emerson, que conseguiu trabalhar e cursar faculdade depois de cumprir pena, sabe que seu caso é uma exceção e espera que o projeto possa ajudar a romper com o ciclo de preconceito com pessoas que passaram pela cadeia. “Infelizmente muitos acreditam na ilusão de que prender vai diminuir a violência e aumentar a segurança pública”, diz.

Quando tiram os óculos da experiência de realidade visceral, as pessoas, geralmente aliviadas, se deparam com o mesmo Emerson, agora ali em pessoa. A reação dos participantes é quase sempre a de abraçá-lo ou chorar. Na opinião dele, as pessoas que participam da experiência ficam muito chocadas e são levadas a refletir sobre a situação do sistema prisional brasileiro.

Assista ao vídeo da Realidade Visceral e conheça a campanha “Encarceramento em massa não é Justiça”.

Fonte: CNJ

 

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