Doação nula de bem fungível pode ser convertida em contrato de mútuo gratuito

Doação nula de bem fungível pode ser convertida em contrato de mútuo gratuito

28 de maio de 2014 às 13:16 

Mãe que entregou à filha dinheiro para tratamento médico da neta tem, após o falecimento de ambas, legitimidade ativa e interesse de agir para mover cobrança contra o espólio, a fim de ter o valor restituído ao seu patrimônio. A decisão é da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que proveu recurso da mãe por entender que o negócio jurídico firmado entre as duas configura contrato de mútuo gratuito, e não de doação.

Para a Turma, se as duas tivessem previsto a nulidade do suposto contrato de doação por ausência de formalidade essencial para a caracterização da alegada antecipação de legítima, elas teriam celebrado contrato de mútuo gratuito por prazo indeterminado, o que autoriza, na hipótese, a conversão.

O caso

Após a venda de uma propriedade de 54 hectares, a mãe entregou o dinheiro à filha para custear o tratamento médico da neta, que sofrera um grave acidente de carro. Porém, em dezembro de 2002, a filha morreu. Em fevereiro de 2006, a neta também faleceu. Assim, o ex-marido da filha passou a ser o único herdeiro.

A mãe ajuizou ação de cobrança contra o espólio da filha, pedindo a restituição ao seu patrimônio do valor doado. Na ação, sustentou que a quantia entregue à filha era um adiantamento da legítima, o qual, após a morte desta e da neta, deveria ser-lhe restituído. Segundo ela, o crédito deve ser deduzido da parte disponível da filha no inventário que tramita na Justiça.

Em primeira instância, o pedido foi negado ao entendimento de que o custeio do tratamento da neta foi ato de mera liberdade da avó e de que o contrato de adiantamento de legítima celebrado não é válido, na medida em que dispõe de herança de pessoa viva. Além disso, o juízo de primeiro grau decidiu que faltou à doadora o interesse de agir. A apelação foi negada pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS).

Irresignada, a autora recorreu ao STJ sustentando que a doação do ascendente ao descendente, em vida, deve ser reconhecida como adiantamento da legítima, o que impõe a observância do direito de colação. Por fim, alegou ser parte legítima para propor a ação de cobrança que visa à restituição ao seu patrimônio da quantia doada à filha.

Natureza do negócio

Ao analisar a questão, a relatora, ministra Nancy Andrighi, destacou que a controvérsia do recurso diz respeito à natureza do negócio jurídico celebrado entre mãe e filha. No caso, o tribunal de origem definiu a doação como mera liberalidade. Porém, a doadora afirmou ser antecipação da legítima.

De fato, segundo a relatora, um dos poderes inerentes à propriedade é o da livre disposição. Entretanto, quando se trata de doação, justamente por encerrar disposição gratuita do patrimônio, o contrato deve ser sempre interpretado restritivamente. A medida é para preservar o mínimo existencial do doador, evitando-lhe prejuízos decorrentes de seu gesto de generosidade.

Para Nancy Andrighi, essa interpretação restritiva recai sobre o elemento subjetivo do negócio, que é a intenção do doador de transferir determinado bem ou vantagem para outrem sem qualquer contraprestação.

Por essa razão, é justificável que o contrato de doação seja celebrado por escritura pública ou instrumento particular, salvo quando tiver por objeto bens móveis de pequeno valor. “A ausência dessa solenidade macula de nulidade o negócio jurídico entabulado entre as partes, conforme preceitua o artigo 145, inciso IV, do Código Civil de 1916”, advertiu a ministra.

Nancy Andrighi ressaltou ainda que outro elemento essencial à doação, que decorre da própria natureza contratual, é a aceitação do donatário, excetuadas apenas as hipóteses de presunção e dispensa desse consentimento, previstas na lei civil. Para tanto, a relatora citou precedente que afirma que a doação é contrato e, consequentemente, além da manifestação de vontade do doador, exige também, em regra, o consentimento do donatário.

“Nesse contexto, por lhe faltarem elementos essenciais, o negócio jurídico celebrado entre mãe e filha não pode ser enquadrado, segundo afirma a recorrente, como um contrato de doação e, portanto, não importa em antecipação de legítima”, acrescentou a relatora.

Conversão

Sobre a inexistência de escritura pública ou instrumento particular atestando o negócio jurídico firmado, a relatora destacou que isso, em princípio, tornaria inválida a alegada doação. De acordo com ela, houve a efetiva entrega de considerável quantia em dinheiro, da mãe à filha, e esta, por sua vez, manifestou a vontade de restituir o valor recebido.

“Em situações como essa, o artigo 170 do Código Civil de 2002 expressamente autoriza a conversão do negócio jurídico, a fim de que sejam aproveitados os seus elementos prestantes, considerando que as partes, ao celebrá-lo, têm em vista os efeitos jurídicos do ato, independentemente da qualificação que o direito lhe dá”, asseverou Nancy Andrighi.

Por meio da conversão – explicou a ministra –, conservam-se os atos jurídicos, porque são interpretados de forma a produzir algum efeito, em vez de nada produzir, caso fosse declarada a sua nulidade (princípio da conservação dos atos jurídicos). Além disso, prestigia-se o resultado pretendido pelas partes (princípio da boa-fé objetiva).

Para que isso aconteça, a lei exige que haja um negócio jurídico nulo; que esse negócio contenha os requisitos de outro; e que o fim a que visavam as partes permita supor que teriam desejado o negócio convertido, se houvessem previsto a nulidade.

Esta notícia se refere ao processo: REsp 1225861


Superior Tribunal de Justiça (STJ)

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