Artigo: Da ação de alteração de regime de bens no Novo CPC. Partes I e II - Por Flávio Tartuce

Artigo: Da ação de alteração de regime de bens no Novo CPC. Parte I - Por Flávio Tartuce

Publicado em: 02/03/2016

O Novo CPC, ao lado do tratamento das ações de família e da regulamentação do divórcio, traz um dispositivo relativo à ação de alteração de regime de bens (art. 734). A regulamentação instrumental dessa demanda é novidade no sistema processual brasileiro.

Como é cediço, a possibilidade jurídica dessa ação de modificação do regime de bens foi criada pelo Código Civil de 2002, especialmente pelo seu art. 1.639, § 2º, segundo o qual: “É admissível alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros”. A regra foi praticamente repetida pelo caput do art. 734 do Novo Código de Processo Civil, in verbis: “A alteração do regime de bens do casamento, observados os requisitos legais, poderá ser requerida, motivadamente, em petição assinada por ambos os cônjuges, na qual serão expostas as razões que justificam a alteração, ressalvados os direitos de terceiros”.

Cumpre destacar que as normas são claras no sentido de somente admitirem a alteração do regime mediante pedido judicial de ambos os cônjuges, em havendo uma ação de jurisdição voluntária, que corre na Vara da Família, se houver. Em projeções legislativas, existe a tentativa de se criar a possibilidade de alteração administrativa do regime de bens, por meio de escritura pública, conforme o PLS 470/2013, conhecido como Estatuto das Famílias do IBDFAM, que conta com o apoio deste autor. Na verdade, a reafirmação da necessidade de uma demanda judicial no Novo Código de Processo Civil já nasce desatualizada diante de outras projeções mais avançadas.

A alteração somente é possível, nos termos literais das normas, se for fundada em pedido motivado, desde que apurada a procedência das razões invocadas. Esse justo motivo constitui uma cláusula geral, a ser preenchida pelo juiz caso a caso, à luz da operabilidade e do sistema aberto adotado tanto pelo CC/2002 quanto pelo CPC/2015.

Como primeiro exemplo, pode ser citado o desaparecimento de causa suspensiva do casamento (art. 1.523 do Código Civil), sendo possível alterar o regime da separação obrigatória de bens para outro, na linha do que consta do Enunciado n. 262 do CJF/STJ, da III Jornada de Direito Civil. A jurisprudência superior já conclui desse modo, cabendo trazer à colação: “por elementar questão de razoabilidade e justiça, o desaparecimento da causa suspensiva durante o casamento e a ausência de qualquer prejuízo ao cônjuge ou a terceiro, permite a alteração do regime de bens, antes obrigatório, para o eleito pelo casal, notadamente porque cessada a causa que exigia regime específico. Os fatos anteriores e os efeitos pretéritos do regime anterior permanecem sob a regência da lei antiga. Os fatos posteriores, todavia, serão regulados pelo CC/2002, isto é, a partir da alteração do regime de bens, passa o CC/2002 a reger a nova relação do casal. Por isso, não há se falar em retroatividade da lei, vedada pelo art. 5º, inc. XXXVI, da CF/1988, e sim em aplicação de norma geral com efeitos imediatos” (STJ, REsp 821.807/PR, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 19.10.2006, DJ 13.11.2006, p. 261).

Como segundo exemplo de um justo motivo, a jurisprudência paulista deferiu a alteração, diante de dificuldades contratuais encontradas por um dos consortes. Assim julgando, por todos: “Regime de Bens. Pedido de alteração do regime de comunhão parcial de bens para o de separação total. Alegação de dificuldade de contratação de financiamento para aquisição de imóvel residencial, por força das dívidas contraídas pelo cônjuge varão. Preenchimento dos requisitos previstos no art. 1.639, § 2º, do Código Civil verificado. Ausência de óbice à alteração do regime de bens do casamento. Medida que não acarretará prejuízo algum aos cônjuges ou aos filhos. Terceiros que não serão atingidos pela alteração, que gerará efeitos apenas ‘ex nunc’. Alteração determinada. Recurso provido” (TJSP, Apelação com Revisão 600.593.4/4, Acórdão 4048973, São Paulo, Primeira Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Luiz Antonio de Godoy, j. 08.09.2009, DJESP 06.11.2009).

De toda sorte, há quem entenda pela desnecessidade de motivação para que o regime de bens seja alterado judicialmente, eis que se trata de uma exigência excessiva constante da lei. Em suma, haveria uma intervenção dispensável do Estado nas questões familiares, o que feriria o princípio da não intervenção, previsto no art. 1.513 do CC/2002 e de outros regramentos do Direito de Família. Com esse sentir, decisão do Tribunal Gaúcho, de relatoria do Des. Luiz Felipe Brasil Santos, que conta com o nosso apoio:

“Apelação cível. Regime de bens. Modificação. Inteligência do art. 1.639, § 2º, do Código Civil. Dispensa de consistente motivação. 1. Estando expressamente ressalvados os interesses de terceiros (art. 1.639, § 2º, do CCB), em relação aos quais será ineficaz a alteração de regime, não vejo motivo para o Estado-Juiz negar a modificação pretendida. Trata-se de indevida e injustificada ingerência na autonomia de vontade das partes. Basta que os requerentes afirmem que o novo regime escolhido melhor atende seus anseios pessoais que se terá por preenchida a exigência legal, ressalvando-se, é claro, a suspeita de eventual má-fé de um dos cônjuges em relação ao outro. Três argumentos principais militam em prol dessa exegese liberalizante, a saber: 1) não há qualquer exigência de apontar motivos para a escolha original do regime de bens quando do casamento; 2) nada obstaria que os cônjuges, vendo negada sua pretensão, simulem um divórcio e contraiam novo casamento, com opção por regime de bens diverso; 3) sendo atualmente possível o desfazimento extrajudicial do próprio casamento, sem necessidade de submeter ao Poder Judiciário as causas para tal, é ilógica essa exigência quanto à singela alteração do regime de bens. 2. Não há qualquer óbice a que a modificação do regime de bens se dê com efeito retroativo à data do casamento, pois, como já dito, ressalvados estão os direitos de terceiros. E, sendo retroativos os efeitos, na medida em que os requerentes pretendem adotar o regime da separação total de bens, nada mais natural (e até exigível, pode-se dizer) que realizem a partilha do patrimônio comum de que são titulares. 3. Em se tratando de feito de jurisdição voluntária, invocável a regra do art. 1.109 do CPC, para afastar o critério de legalidade estrita, decidindo-se o processo de acordo com o que se repute mais conveniente ou oportuno (critério de equidade). Deram provimento. Unânime” (TJRS, Apelação Cível 172902-66.2011.8.21.7000, Marcelino Ramos, Oitava Câmara Cível, Rel. Des. Luiz Felipe Brasil Santos, j. 28.07.2011, DJERS 04.08.2011).

Consigne-se que, em sentido muito próximo, o Tribunal Paulista entendeu que não há necessidade de detalhamento das razões, ou seja, pela “desnecessidade de apresentação muito pormenorizada de razão” para a alteração do regime (TJSP, Apelação 0018358-39.2009.8.26.0344, Acórdão 5185207, Marília, Sétima Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Gilberto de Souza Moreira, j. 01.06.2011, DJESP 09.08.2011).

Mais recentemente, pronunciou-se da mesma maneira o Superior Tribunal de Justiça, conforme publicação que consta do seu Informativo n. 518, com o seguinte tom:

“Nesse contexto, admitida a possibilidade de aplicação do art. 1.639, § 2º, do CC/2002 aos matrimônios celebrados na vigência do CC/1916, é importante que se interprete a sua parte final – referente ao ‘pedido motivado de ambos os cônjuges’ e à ‘procedência das razões invocadas’ para a modificação do regime de bens do casamento – sob a perspectiva de que o direito de família deve ocupar, no ordenamento jurídico, papel coerente com as possibilidades e limites estruturados pela própria CF, defensora de bens como a intimidade e a vida privada. Nessa linha de raciocínio, o casamento há de ser visto como uma manifestação de liberdade dos consortes na escolha do modo pelo qual será conduzida a vida em comum, liberdade que se harmoniza com o fato de que a intimidade e a vida privada são invioláveis e exercidas, na generalidade das vezes, no interior de espaço privado também erguido pelo ordenamento jurídico à condição de ‘asilo inviolável’. Sendo assim, deve-se observar uma principiologia de ‘intervenção mínima’, não podendo a legislação infraconstitucional avançar em espaços tidos pela própria CF como invioláveis. Deve-se disciplinar, portanto, tão somente o necessário e o suficiente para a realização não de uma vontade estatal, mas dos próprios integrantes da família. Desse modo, a melhor interpretação que se deve conferir ao art. 1.639, § 2º, do CC/2002 é a que não exige dos cônjuges justificativas exageradas ou provas concretas do prejuízo na manutenção do regime de bens originário, sob pena de esquadrinhar indevidamente a própria intimidade e a vida privada dos consortes. Nesse sentido, a constituição de uma sociedade por um dos cônjuges poderá impactar o patrimônio comum do casal. Assim, existindo divergência conjugal quanto à condução da vida financeira da família, haveria justificativa, em tese, plausível à alteração do regime de bens. Isso porque se mostra razoável que um dos cônjuges prefira que os patrimônios estejam bem delimitados, para que somente o do cônjuge empreendedor possa vir a sofrer as consequências por eventual fracasso no empreendimento” (STJ, REsp 1.119.462/MG, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 26.02.2013).

Em suma, tem-se mitigado jurisprudencialmente a estrita exigência normativa do art. 1.639, § 2º, do CC/2002, o que vem em boa hora, pois são os cônjuges aqueles que têm a melhor consciência sobre os embaraços que o regime de bens adotado pode gerar em sua vida cotidiana.

A interpretação deve ser a mesma no que diz respeito ao Novo Código de Processo Civil que, mais uma vez, parece estar na contramão da jurisprudência, ao exigir expressamente a motivação para a mudança do regime.

Ainda nos termos da literalidade dos dois comandos, material e processual, a alteração do regime de bens não poderá prejudicar os direitos de terceiros, presente uma intenção legislativa de se proteger a boa-fé objetiva e de desprestigiar a má-fé. De modo algum essa alteração do regime poderá ser utilizada com intuito de fraude, inclusive tributária. A jurisprudência tem exigido cabalmente a prova de ausência de prejuízos a terceiros (TJSP, Apelação 644.416.4/0, Acórdão 4168081, Boituva, Quarta Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Ênio Santarelli Zuliani, j. 29.10.2009, DJESP 10.12.2009). Na mesma linha, o Enunciado n. 113 do CJF/STJ, aprovado na I Jornada de Direito Civil: “É admissível a alteração do regime de bens entre os cônjuges, quando então o pedido, devidamente motivado e assinado por ambos os cônjuges, será objeto de autorização judicial, com ressalva dos direitos de terceiros, inclusive dos entes públicos, após perquirição de inexistência de dívida de qualquer natureza, exigida ampla publicidade”.

De qualquer forma, destaque-se que, em havendo prejuízo para terceiros de boa-fé, a alteração do regime deve ser reconhecida como meramente ineficaz em relação a esses, o que não prejudica a sua validade e eficácia entre as partes. Como bem explica Débora Brandão, “o resguardo dos direitos de terceiros por si só não tem o condão de obstar a mutabilidade do regime de bens. Aponta-se como solução para ele a elaboração de um sistema registral eficiente, tanto do pacto antenupcial como de suas posteriores modificações, para devida publicidade nas relações entre os cônjuges a terceiros e a produção de efeitos, ou seja, a alteração só produziria efeitos em relação a terceiros após a devida publicidade da sentença, cuja natureza é constitutiva, restando inalterados todos os negócios posteriormente praticados. Respeita-se, dessa forma, o ato jurídico perfeito” (BRANDÃO, Débora Vanessa Caús. Regime de Bens no Código Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 103).

Concluindo, nessa esteira, no âmbito jurisprudencial: “a alteração do regime de bens não tem efeito em relação aos credores de boa-fé, cujos créditos foram constituídos à época do regime de bens anterior” (TJRS, Agravo de Instrumento 70038227633, Porto Alegre, Oitava Câmara Cível, Rel. Des. Rui Portanova, j. 24.08.2010, DJERS 30.08.2010). O acórdão julgou pela desnecessidade de prova, pelos cônjuges, da inexistência de ações judiciais ou de dívidas, pois isso não prejudica a eficácia da alteração do regime entre os cônjuges. Em síntese, não se seguiu a linha do citado Enunciado n. 113 do CJF/STJ, pois a perquirição da existência de dívidas ou demandas não seria uma exigência para a modificação do regime. Houve, nesse contexto, um abrandamento do texto do art. 1.639, § 2º, do CC/2002, servindo a mesma conclusão para o art. 734, caput, do CPC/2015.

Cumpre ressaltar que outras decisões exigem tal prova, para que a alteração patrimonial seja considerada idônea e, então, deferida pelo juiz da causa (por todos: TJDF, Recurso 2006.01.1.036489-5, Acórdão 386.017, Sexta Turma Cível, Rel. Des. Luis Gustavo B. de Oliveira, DJDFTE 12.11.2009, p. 121; e TJSP, Apelação 644.416.4/0, Acórdão 4168081, Boituva, Quarta Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Ênio Santarelli Zuliani, j. 29.10.2009, DJESP 10.12.2009). A questão, como se vê, é polêmica, devendo ser aprofundada com a emergência do novel Estatuto Processual.

Aliás, expressa o § 1º do art. 734 do CPC/2015 que, ao receber a petição inicial da ação de alteração de regime de bens, o juiz determinará a intimação do Ministério Público e a publicação de edital que divulgue a pretendida modificação, somente podendo decidir o juiz depois de decorrido o prazo de 30 dias da publicação do edital. Como se vê, o Novo Estatuto Processual aprofunda a preocupação com a possibilidade de fraudes, determinando a atuação do MP, mesmo não havendo interesses de incapazes. Por todos os argumentos antes expostos, a preocupação parece excessiva e desatualizada ante a doutrina e jurisprudência consolidadas diante do Código Civil Brasileiro de 2002.

No que concerne à publicidade da modificação do regime patrimonial, no ano de 2012, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que o mero registro da sentença transitada em julgado tem o condão de dar publicidade à alteração do regime de bens, não devendo prevalecer norma da Corregedoria do Tribunal do Estado do Rio Grande do Sul, que apontava a necessidade de publicação de editais dessa alteração. Assim, em certo sentido, não se adotou, por igual, a parte final do citado Enunciado n. 113, que determina a necessidade de ampla publicidade na modificação do regime. Vejamos a ementa do decisum:

“Civil. Família. Matrimônio. Alteração do regime de bens do casamento (CC/2002, art. 1.639, § 2º). Expressa ressalva legal dos direitos de terceiros. Publicação de edital para conhecimento de eventuais interessados, no órgão oficial e na imprensa local. Provimento 24/2003 da Corregedoria do Tribunal Estadual. Formalidade dispensável, ausente base legal. Recurso especial conhecido e provido. 1. Nos termos do art. 1.639, § 2º, do Código Civil de 2002, a alteração do regime jurídico de bens do casamento é admitida, quando procedentes as razões invocadas no pedido de ambos os cônjuges, mediante autorização judicial, sempre com ressalva dos direitos de terceiros. 2. Mostra-se, assim, dispensável a formalidade emanada de Provimento do Tribunal de Justiça de publicação de editais acerca da alteração do regime de bens, mormente pelo fato de se tratar de providência da qual não cogita a legislação aplicável. 3. O princípio da publicidade, em tal hipótese, é atendido pela publicação da sentença que defere o pedido e pelas anotações e alterações procedidas nos registros próprios, com averbação no registro civil de pessoas naturais e, sendo o caso, no registro de imóveis. 4. Recurso Especial provido para dispensar a publicação de editais determinada pelas instâncias ordinárias” (STJ, REsp 776.455/RS, Quarta Turma, Rel. Min. Raul Araújo, j. 17.04.2012, DJE 26.04.2012).

Feitas tais considerações a respeito do tema, em um próximo texto, complementar ao presente, analisaremos os efeitos da ação de alteração do regime de bens, uma importante questão de direito intertemporal, bem como outras regras que foram introduzidas pelo Novo Código de Processo Civil
.

Flávio Tartuce é Advogado. Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP. Professor da Escola Paulista de Direito e da Rede de Ensino LFG. Autor da Editora Método.

Fonte: GenJurídico
Extraído de Recivil

____________________________

Artigo - Da ação de alteração de regime de bens no Novo CPC (parte II) - Por Flávio Tartuce

Publicado em: 07/04/2016

Conforme destacado em texto anterior, publicado neste canal, o Novo CPC traz um dispositivo relativo à ação de alteração de regime de bens (art. 734). A regulamentação instrumental dessa demanda é novidade no sistema processual brasileiro. No que diz respeito à possibilidade jurídica dessa ação de modificação do regime de bens, esta foi criada pelo Código Civil de 2002, especialmente pelo seu art. 1.639, § 2º, segundo o qual: “É admissível alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros”. A regra foi praticamente repetida pelo caput do art. 734 do Novo Código de Processo Civil. Trata-se de demanda que ganhou grande relevância entre os familiaristas nos últimos anos.

Analisadas as questões relativas à justa causa para a mudança e os direitos de terceiros, é preciso abordar os efeitos da sentença que defere a alteração. O presente autor segue a posição segundo a qual os efeitos da alteração do regime são ex nunc, ou seja, a partir do trânsito em julgado da decisão, o que nos parece cristalino, por uma questão de eficácia patrimonial.

Conforme pontuado pelo Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, nos autos do Recurso Especial 1.300.036/MT, julgado pela Terceira Turma do STJ em maio de 2014, “o segundo ponto controvertido situa-se em torno da fixação do termo inicial dos efeitos dessa alteração do regime de bens: retroação à data do casamento (eficácia ‘ex tunc’) ou a partir da data do trânsito em julgado da decisão judicial que o alterou (eficácia ‘ex nunc’). Essa questão, ainda hoje debatida na doutrina e na jurisprudência, é relevante na espécie, pois as partes, após alguns anos de união estável, casaram-se, em 24/05/1997, pelo regime da separação de bens, alterando esse regime para comunhão parcial em 2007, deflagrando-se o processo de separação em outubro de 2008. Em relação à eficácia ‘ex tunc’, o acórdão recorrido sintetiza os argumentos em prol dessa tese, sendo o principal deles o de que o regime de bens do casamento deve ser único ao longo de toda a relação conjugal. Em relação à eficácia ‘ex nunc’, o argumento central é no sentido de que a eficácia da alteração de um regime de bens, que era válido e eficaz, deve ser para o futuro, preservando-se os interesses dos cônjuges e de terceiros”.

Ao final, o Ministro Sanseverino segue a segunda solução, compartilhada por este autor, “pois não foi estabelecida pelo legislador a necessidade de que o regime de bens do casamento seja único ao longo de toda a relação conjugal, podendo haver a alteração com a chancela judicial. Em Cortes Estaduais, na mesma esteira, cabe destacar julgados do Tribunal Gaúcho e Paulista” (por todos: TJRS; Apelação cível n. 0056229-48.2015.8.21.7000, Porto Alegre, Sétima Câmara Cível, Rel. Des. Jorge Luís Dall’Agnol, julgado em 26.05.2015, DJERS 03.06.2015 e TJSP, Apelação n. 0013056-15.2007.8.26.0533, Acórdão n. 5065672, Santa Bárbara d’Oeste, Nona Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Viviani Nicolau, julgado em 12/04/2011, DJESP 01/06/2011).

Esclareça-se que a natureza desses efeitos é capaz de afastar a necessidade de prova da ausência de prejuízos a terceiros pelos cônjuges, para que a alteração do regime de bens seja deferida, conforme sustentamos em texto anterior. Ademais, eventuais efeitos ex tunc fariam que o regime de bens anterior não tivesse eficácia, atingindo um ato jurídico perfeito, constituído por vontade dos cônjuges.

No âmbito da doutrina, e da própria jurisprudência, ressalte-se, todavia, que a questão não é pacífica. Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, por exemplo, entendem que os efeitos são ex tunc porque “quando os cônjuges pretendem modificar o seu regime, o patrimônio atingido, que sofrerá a incidência do novo regramento é, por óbvio, aquele existente, até a data da sentença da mudança. Ora, com isso, é forçoso convir que os bens e valores amealhados — em conjunto ou separadamente — pelos consortes até o momento da mudança serão atingidos pelo pronunciamento judicial, submetendo-se, pois, a novo regramento. Sob esse aspecto, a sentença, pois, necessariamente, incide no patrimônio anterior. Daí por que a sua eficácia é ex tunc” (Novo Curso de Direito Civil Direito de Família. 2. Ed. São Paulo: Saraiva, 2012, v. 6, p. 336). Também podem ser encontradas decisões estaduais que seguem esse caminho (por todos: TJMG, Apelação cível n. 1.0223.11.006774-9/001, Rel. Des. Luis Carlos Gambogi, julgado em 26/06/2014, DJEMG 07.07.2014 e TJDF, Recurso 2010.01.1.006987-3, Acórdão n. 440.239, Primeira Turma Cível, Rel. Des. Natanael Caetano, DJDFTE 25.08.2010, pág. 77).

Exposta a controvérsia e reiterada nossa posição pelos efeitos ex nunc da sentença que altera o regime de bens, é preciso retomar debate de direito intertemporal a respeito dessa demanda, regulamentada agora pelo Novo CPC. Seria possível alterar regime de bens de casamento celebrado na vigência do Código Civil de 1916 e do Código de Processo Civil de 1973?

Muitos poderiam pensar que a resposta é negativa, diante do que consta do art. 2.039 do Código Civil de 2002, in verbis:“O regime de bens nos casamentos celebrados na vigência do Código Civil anterior, Lei 3.071, de 1º de janeiro de 1916, é o por ele estabelecido”. Essa, contudo, não é a melhor conclusão para os devidos fins práticos.

Um dos primeiros autores na doutrina brasileira a perceber a real intenção do legislador foi Euclides de Oliveira. A respeito do art. 2.039, explica o jurista que esse dispositivo legal “apenas determina que, para os casamentos anteriores ao Código Civil de 2002, não poderão ser utilizadas as regras do novo Código Civil referentes às espécies de regime de bens, para efeito de partilha do patrimônio do casal. Ou seja, somente as regras específicas acerca de cada regime é que se aplicam em conformidade com a lei vigente à época da celebração do casamento, mas, quanto às disposições gerais, comuns a todos os regimes, aplica-se o novo Código Civil” (Alteração do Regime de Bens no Casamento. In: DELGADO, Mário Luiz; ALVES, Jones Figueirêdo [Coords.]. Questões Controvertidas no Novo Código Civil. São Paulo: Método, 2003. V. 1, p. 389).

Em síntese, como o art. 1.639, § 2º, do CC/2002 é uma norma geral quanto ao regime de bens, pode ser aplicada a qualquer casamento, entendimento esse que foi acatado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, já no remoto ano de 2004 (TJSP, Apelação Cível n. 320.566-4/0, São Paulo, Décima Câmara de Direito Privado, Rel. Marcondes Machado, 08.06.2004, v. U.).

Contudo, coube ao Superior Tribunal de Justiça fazer a melhor interpretação da questão. Isso porque a Corte utilizou o art. 2.035, caput, do CC/2002 e a Escada Ponteana para deduzir que é possível alterar regime de bens de casamento celebrado na vigência da codificação material anterior.

Como é notório, Pontes de Miranda, em seu Tratado de Direito Privado (Tomos 3, 4 e 5), dividiu o negócio jurídico em três planos. O primeiro é o plano da existência, no qual estão os pressupostos mínimos de um negócio jurídico, que formam o seu suporte fático: partes, vontade, objeto e forma. O segundo é o plano da validade, em que os elementos mínimos de existência recebem qualificações, nos termos do art. 104 do CC/2002, a saber: partes capazes; vontade livre; objeto lícito, possível, determinado ou determinável; forma prescrita ou não defesa em lei. Por fim, no plano da eficácia, estão as consequências do negócio jurídico, elementos relacionados com os seus efeitos (condição, termo, encargo, inadimplemento, juros, multa, perdas e danos, entre outros).

Relativamente a esses três planos e à aplicação das normas jurídicas no tempo, estabelece o importante art. 2.035, caput, do Código Civil em vigor: “A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução”.

Em resumo, o que o dispositivo legal está estabelecendo é que, quanto aos planos da existência e da validade (o primeiro está dentro do segundo), devem ser aplicadas as normas do momento da constituição ou celebração do negócio. No tocante ao plano da eficácia, devem incidir as normas do momento dos efeitos.

O regime de bens, por razões claras e lógicas, situa-se no plano da eficácia, pois diz respeito às consequências práticas do casamento, à modificação ou extinção de direitos. Ademais, a existência ou a validade do casamento não depende do regime de bens adotado. Em complemento, é notório que, não havendo adoção por qualquer regime, prevalecerá o regime legal ou supletório, qual seja, o da comunhão parcial de bens (art. 1.640 do Código Civil).

Diante dessas premissas, entendeu o Tribunal da Cidadania, em conhecido precedente, que “apresenta-se razoável, in casu, não considerar o art. 2.039 do CC/2002 como óbice à aplicação de norma geral, constante do art. 1.639, § 2º, do CC/2002, concernente à alteração incidental de regime de bens nos casamentos ocorridos sob a égide do CC/1916, desde que ressalvados os direitos de terceiros e apuradas as razões invocadas pelos cônjuges para tal pedido, não havendo que se falar em retroatividade legal, vedada nos termos do art. 5º, XXXVI, da CF/1988, mas, ao revés, nos termos do art. 2.035 do CC/2002, em aplicação de norma geral com efeitos imediatos” (STJ, REsp 730.546/MG, Quarta Turma, Rel. Min. Jorge Scartezzini, j. 23.08.2005, DJ 03.10.2005, p. 279). Sucessivamente, outros julgados surgiram na mesma esteira desse julgamento, estando a questão consolidada em nossa jurisprudência (por todos: STJ, REsp 1.112.123/DF, Terceira Turma, Rel. Min. Sidnei Beneti, j. 16.06.2009, DJE 13.08.2009; TJRS, Apelação Cível n. 383376-78.2012.8.21.7000, Bagé, Oitava Câmara Cível, Rel. Des. Luiz Felipe Brasil Santos, j. 29.11.2012, DJERS 05.12.2012; TJSP, Apelação n. 9102946-53.2007.8.26.0000, Acórdão n. 5628185, São Paulo, Quarta Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Fábio Quadros, j. 17.11.2011, DJESP 24.01.2012; TJPR, Apelação Cível n. 0413965-9, Astorga, Décima Primeira Câmara Cível, Rel. Des. Mário Rau, DJPR 28.03.2008, p. 110; TJMG, Apelação Cível n. 1.0439.06.053252-0/001, Muriaé, Sétima Câmara Cível, Rel. Des. Antônio Marcos Alvim Soares, j. 06.03.2007, DJMG 04.05.2007; e TJRJ, Apelação Cível n. 2007.001.08400, Quinta Câmara Cível, Rel. Des. Milton Fernandes de Souza, j. 27.03.2007).

Cumpre esclarecer, por oportuno, que esse entendimento jurisprudencial já tinha amparo doutrinário no Enunciado 260, aprovado na III Jornada de Direito Civil, realizada em 2004, nos seguintes termos: “A alteração do regime de bens prevista no § 2º do art. 1.639 do Código Civil também é permitida nos casamentos realizados na vigência da legislação anterior”. Em suma, essa é a posição majoritária da doutrina e da jurisprudência brasileiras, que vem ser integralmente mantidas na vigência do Estatuto Processual emergente.

Voltando aos preceitos do Novo CPC, conforme o § 2º do art. 734, os cônjuges, na petição inicial ou em petição avulsa, podem propor ao juiz meio alternativo de divulgação da alteração do regime de bens, a fim de resguardar direitos de terceiros. Assim, por exemplo, não obsta a divulgação da alteração em um jornal local ou em um sítio da internet. Mais uma vez, há, na opinião deste autor, uma preocupação excessiva com a fraude, na contramão da doutrina e da jurisprudência construídas sob a égide do Código Civil de 2002.

Por fim, demonstrando a mesma preocupação, após o trânsito em julgado da sentença de alteração do regime de bens, serão expedidos mandados de averbação aos cartórios de registro civil e de imóveis. Nos termos do mesmo § 3º do art. 734 do CPC/2015, caso qualquer um dos cônjuges seja empresário, deve ser expedido também mandado de averbação ao registro público de empresas mercantis e atividades afins
.

Flávio Tartuce é Advogado. Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP. Professor da Escola Paulista de Direito e da Rede de Ensino LFG. Autor da Editora Método.

Fonte: JusBrasil
Extraído de Recivil

Notícias

STJ vai estabelecer formalidades necessárias para leilão extrajudicial

STJ vai estabelecer formalidades necessárias para leilão extrajudicial É possível anular um leilão extrajudicial e desfazer o negócio entre arrematante e instituição financeira pelo fato de o edital desrespeitar os requisitos exigidos para o leilão judicial? A questão está nas mãos da 3ª Turma do...

Observância da cláusula de indenização por infidelidade no pacto antenupcial

Opinião Observância da cláusula de indenização por infidelidade no pacto antenupcial Fabrício Franklin 8 de setembro de 2024, 6h33 Nessa linha de raciocínio, no ano de 2018, o plenário do CNJ decidiu que os cartórios extrajudiciais estariam proibidos de realizar a celebração de pacto de...