Divórcio sem traumas

Divórcio sem traumas

Valeria Calente e Aliene P. L. Torres de Carvalho

O ideal é chegar a um acordo de divórcio que contemple as pretensões de todos os envolvidos, e possa garantir que no futuro não serão ajuizadas novas ações para dirimir conflitos, oriundas de situações mal contempladas, omissas e/ou não resolvidas e que possam prolongar o desgaste.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2023
Atualizado às 09:20

INTRODUÇÃO

Este tema é bastante interessante, por envolver não só questões jurídicas como também afetivas, pessoais, financeiras e familiares, e acabar resvalando nos filhos, os quais, principalmente quando menores, são os mais afetados com o desfazimento do relacionamento dos pais e as mudanças na família como um todo, desencadeadas com esse processo de ruptura.

Não temos pretensão de dar lição de Direito, apenas ilustrar o leitor de uma forma mais humana, e nos sentimos gratificadas por participarmos dessa troca de ideias e experiências.

HISTÓRICO

O divórcio tem sofrido modificações importantes em nossa sociedade e no sistema legislativo nacional.

A Constituição Federal de 1934 trazia como preceito constitucional, a indissolubilidade do casamento, em razão dos resquícios coloniais das Ordenações do Reino, que impregnadas pelo Direito Canônico, consideravam o casamento um sacramento, sem possibilidade de dissolução.

O desquite foi instituído no ano de 1942, a partir do artigo 315, do Código Civil de 1916, uma modalidade de separação do casal e de seus bens materiais, sem romper o vínculo conjugal; o que impedia novos casamentos.

Até 1977 o casamento era indissolúvel, e havia forte oposição contra a instituição do divórcio pelas bancadas legislativas tradicionalistas, por questões morais e religiosas; inobstante a sociedade clamasse por mudanças. Nesse passo surgiu a Emenda Constitucional 9/77, de autoria do senador Nelson Carneiro, permitindo a alteração constitucional favorável ao divórcio e a promulgação da lei do Divórcio 6.515, em 26 de dezembro de 1977, disciplinando a matéria no âmbito da legislação civil e processual, com alterações nos Códigos Civil de 1916 e de Processo Civil de 1973.

Porém, as suas restrições dificultavam a sua utilização: embora tivesse sido extinto o desquite, sendo ele substituído pela separação judicial; o casal que não completara 2 anos de matrimônio não podia se divorciar; só se admitia o divórcio uma única vez; e o divórcio direto só podia ser decretado quando houvesse a separação de fato por mais de 5 anos comprovada ou por conversão da separação judicial depois de 2 anos.

Com o passar do tempo essas restrições foram enfraquecendo e caindo por terra, e o entendimento pacífico era de que a separação judicial põe termo à sociedade conjugal, ao passo que o divórcio dissolve o próprio vínculo matrimonial tal como a morte.

Com o advento da mais recente Emenda Constitucional 66/2010 e a extinção da separação judicial (que aboliu a discussão sobre a culpa pela ruptura da vida conjugal e os motivos ensejadores dessa ruptura), o legislador contemporâneo acabou facilitando o divórcio, tornando-o obrigatório e impondo ao juiz a sua decretação. Ou seja, basta que um dos cônjuges queira se divorciar para que haja a extinção do casamento, não sendo mais possível obrigar alguém a manter-se casado contra a sua vontade.

Mas para que esse decreto divorcista seja concedido, exige-se tão somente a resolução das questões afetas aos filhos menores: alimentos para a prole, com divisão de responsabilidades dos pais, obrigados moral e legalmente pelo sustento dos filhos menores e inválidos; quem assumirá a guarda; qual será a residência fixada para as crianças - do pai ou da mãe; e como se dará o regime de convivência com ambos os pais.

De resto, quanto à partilha, alimentos entre os cônjuges e outras questões atinentes ao casal, nada disso se impõe como condição para o decreto de divórcio, embora não se impeça que, havendo divergências, essas questões sejam judicializadas, em conjunto com a ação de divórcio e/ou por ações autônomas.

OS EFEITOS DO DIVÓRCIO

Recebemos os ensinamentos, passados de geração em geração, inclusive de cunho religioso, de que "o que Deus uniu o homem não separa" ou que "o casamento é eterno". Os noivos fazem juras de amor reciprocas e indissolúveis, e algumas pessoas, presas nessas crenças, não conseguem se libertar dos vínculos matrimoniais, mesmo quando o relacionamento conjugal já faliu. Preferem suportar a relação ruim, fazendo de conta para a sociedade que tudo vai bem, por motivos variados: falta de coragem, medo do desconhecido, preocupação com os filhos, dependência financeira, emocional ou psicológica. Enfim, preferem continuar se anulando, sem perceberem que manter essa relação conjugal nociva contamina o ambiente familiar, faz mal para os filhos e principalmente para eles próprios, cônjuges que não mais comungam dos mesmos objetivos, da mesma cama, da mesma mesa, e já tem vidas completamente separadas, inexistindo a comunhão de ideais e objetivos que os uniu no passado.

Não existe mais um casal. Agora cada um está por si e ambos, cada qual do seu jeito, buscando sublimar essa separação já consolidada com outros prazeres e afazeres. Mas, e os filhos? Como ficam eles no meio dessa situação infeliz?

Outras ciências, como a Antropologia e a Psiquiatria, são muito mais profundas no estudo da ruptura gerada pelo divórcio. Vemos muitas menções de que o Divórcio possui várias fases, e nesse caminho, certamente, os filhos, que são muito inteligentes já sabem, na primeira fase, exatamente o que acontece e que os pais não estão felizes:

1ª) Divórcio emocional: onde ocorre o distanciamento do casal e a evolução da vida individual;

2ª) Divórcio legal: decisão de terminar o casamento, negociação e assinatura do divórcio consensual ou propositura do divórcio litigioso;

3ª) Divórcio econômico: desiquilíbrio financeiro das partes, privação do uso de bens comuns;

4ª) Divórcio parental: quando o ex-casal possui filhos menores discute-se quem é o mais apto a cuidar das crianças. Nesta fase, situações mal resolvidas levam à propositura de ações temerárias, como pedidos de alimentos em patamares incompatíveis, alegações falsas de abuso sexual ou alienação parental contra a prole, etc. Há o desejo de vingança pelos afetos mal resolvidos da união desfeita, através da vida da criança;

5ª) Divórcio Social ou Comunitário: quando ocorre a mudança de grupo de amigos, separação das famílias materna e paterna, mudança de casa;

6ª) Divórcio Psíquico ou psicológico: quando se encara o fato de estar divorciado de frente, reconstrução da independência e abertura de novos relacionamentos.

Os especialistas em Psicologia e Educação pregam que a família é a base da sociedade, que desde o nascimento estamos em desenvolvimento constante e, conforme crescemos, vamos agregando ao nosso ser e à nossa personalidade modelos e padrões de conduta que aprendemos com nossos pais, à base principalmente de exemplos de conduta.

Ora, se quando crianças e adolescentes vemos nossos pais desunidos, infelizes um com o outro, mas fazendo de conta que está tudo bem e em harmonia, é evidente que temos grandes chances de desenvolver conceitos bastante equivocados e falhos sobre casamento e família. E isso, evidentemente, vai acarretar dentro de nós, crianças sem recursos internos e maturidade, sentimentos devastadores e extremamente prejudiciais impedindo que possamos nos transformar em adultos saudáveis menta, psicológica e emocionalmente.

Nesse contexto, os filhos podem desenvolver conflitos de lealdade, um dos sintomas da síndrome de alienação parental, sentimento de culpa por poder achar que a infelicidade do casamento dos pais foi causada por eles, raiva, estresse, dificuldades de aceitação dos pais ou de um deles, ausência de habilidades para superar problemas, frustação quando contrariados, etc.

Nesse passo, é importante que os ex-cônjuges e pais se conscientizem de que a formalização da separação que, no seio da família já ocorre, mas está camuflada, pode ser a mais benéfica para todos os entes da família e para o enfrentamento da nova situação, de forma que as perdas inevitáveis advindas da separação se transformem em ganhos futuros.

O primeiro passo para mudar é reunir os filhos e numa conversa bastante franca, ambos os pais, em conjunto, contarem que tomaram a decisão de se divorciar. Não é necessário citar os motivos, apenas dizer a verdade, ou seja, não se amam mais como um casal, mas permanecem o respeito, o carinho, a amizade, a consideração e que continuam se gostando como amigos; o que não é suficiente para manter o casamento. E o mais importante é deixar claro para os filhos que eles continuarão sendo amados por ambos os pais. Essa fala lhes dará a segurança de que não haverá ruptura do contato com nenhum dos genitores, e que não ficarão desamparados.

Quanto mais natural for a conversa, melhor. Inclusive, uma sugestão que costuma amenizar os efeitos ruins dessa dessa notícia, é enaltecer as lembranças boas da família, dizer aos filhos quanto são importantes para os pais e até relembrar episódios engraçados do passado. Essas lembranças podem confortar os corações aflitos e espantar a tristeza. Ademais, todos nós temos o direito de buscar a felicidade.

O segundo passo, seria o compromisso que os ex-cônjuges devem assumir no sentido de ser terminantemente proibido falar mal um do outro, criticarem os erros eventuais que o outro praticou, ainda que no âmbito pessoal esses erros continuem imperdoáveis ou causando magoas, raiva e imputação de culpa. Afinal, errar é humano e julgar o outro é muito fácil. No entanto, não podemos esquecer que todos nós temos autonomia para fazer escolhas e muitas vezes a ação do outro foi consequência das nossas próprias ações.

Portanto, quando se fala em culpa, temos que ter em mente que toda reação sempre corresponde a uma ação anterior. Por outras palavras, se eu agi assim, é porque o outro agiu assado antes, e ficar julgando ou apontando o dedo no nariz do outro só vai trazer mais raiva, provocação e novos sentimentos abjetos que, no mais das vezes, trazem mais prejuízos para nós mesmos.

Se não é possivel perdoar, também é desnecessário trazer esses sentimentos ruins para os filhos.

Há coisas que não devem ser ditas, jamais, aos filhos, não só para poupá-los de sofrimentos maiores do que o divórcio dos pais já lhes reserva, de perdas, como também para evitar que tomem partido de um ou de outro genitor.

Tambem é proibido fazer-se de vítima para os filhos, pois eles não podem servir de bengalas para amenizar as dores dos pais.

O compromisso dos divorciandos deve ser firme no sentido de nunca usar os filhos para servirem de instrumento de agressão contra o ex-cônjuge.

À medida que os atos de execução desta separação vão sendo definidos, como a mudança de moradia, novas rotinas, etc., os filhos devem ser informados por ambos os pais. Essa atitude lhes dará a segurança e a certeza de que são verdadeiramente considerados por ambos os genitores, pois é imprescindível que os filhos saibam que seus pais buscam a felicidade, estão aliviados por chegarem nesse ponto sempre de comum acordo, e estão alinhados.

Por mais difícil que seja divorciar-se, esse processo de ruptura não precisa ser traumático para os filhos. Tudo pode ser feito com tranquilidade, sem dramas e de forma transparente.

É extremamente importante, ainda, que o acordo de divórcio atenda, da maneira mais segura possivel, à vontade de todos, que cada qual dos divorciandos tenha consciência que deve ceder em alguns itens para chegar a bom termo sem se prejudicar e especialmente sem prejudicar os filhos, mesmo porque toda separação implica em queda de padrão de vida e isso reflete na vida de todos, inclusive dos filhos.

E os entes dessa família desfeita deverão ter pleno conhecimento de que não se caminha se não houver uma parcela de sacrifício da parte de todos, mesmo das crianças, cuja rotina sempre é alterada em vista do regime de convivência com ambos os pais.

Com efeito, muita compreensão e conversa serão essenciais para um bom desfecho e um futuro sem traumas.

Não vamos falar aqui do divórcio litigioso, porque esta modalidade foge ao escopo deste trabalho e demandaria muitas páginas. Limitando-nos a dizer que, se o divórcio consensual já e difícil, o litigioso é ainda mais traumático, pois eleva sobremaneira os custos financeiros e emocionais para as partes envolvidas.

E não é só: o divórcio litigioso não tem prazo certo para terminar, e o prolongamento dos vínculos decorrentes do casamento não finalizado, ainda que seja por meio de um ou vários processos judiciais, só causa perdas afetivas ainda maiores. Portanto, é prudente agir com maturidade, respeito pelo outro e por si mesmo, e especialmente com amor, desarmado para enfrentar essa difícil ruptura, com vistas a um futuro melhor e positividade.

Por fim, ressaltamos que o ideal é chegar a um acordo de divórcio que contemple as pretensões de todos os envolvidos, e possa garantir que no futuro não serão ajuizadas novas ações para dirimir conflitos, oriundas de situações mal contempladas, omissas e/ou não resolvidas e que possam prolongar o desgaste.

Como se vê o divórcio sem traumas é perfeitamente possivel, basta paciência, coragem, desprendimento, sinceridade, manifestação de desejos e pretensões com clareza, disposição para a conversa e o enfrentamento de problemas em busca de solução, boa-fé, e muito amor, até mesmo incondicional, pelos filhos.

Nessa nossa longa trajetória profissional pudemos observar que, os clientes que conseguem se divorciar sem traumas se tornam pessoas mais felizes e seus filhos tendem a se tornar adultos mais saudáveis emocionalmente, além de mais felizes do que aqueles cuja guarda é ou foi disputada como se troféus fossem as crianças.

Desejamos que os divórcios sem traumas sejam a regra e que as pessoas se conscientizem de que os litígios não trazem paz, nem felicidade e possam resolver suas diferenças com mais leveza, naturalidade e desprendimento. Afinal, não há amor maior do que o que temos pelos nossos filhos. Eles são a razão do nosso viver.

Valeria Calente
Graduada em 1992, pelas Faculdades Integradas de Guarulhos. Procuradora do Estado de São Paulo - PAJ, de 1995 a 2001. Especialista em Direito Tributário - Largo de São Francisco, 1993. Extensão em Direito Ambiental, FMU, 2000. Atualização em Direito Médico pela Universidade de Coimbra, 2017. Integrou as Comissões de Direito Médico; Relações Internacionais; Direito Sanitário; Segurança Privada. Jornalista e Palestrante. Colunista do Portal Cartão de Visita, R7 (2020) com matérias de interesse público. Diretora da Associação Brasileira de Advogados.

Aliene P. L. Torres de Carvalho
Graduada em 1985, pela Pontifícia Universidade Católica. Advocacia desde então na área do Direito das Famílias e Sucessões. Professora de Direito Civil na graduação da PUC, como professora assistente de 1990 a 1995. Professora de Direito Civil da UNIP - Universidade Paulista de 1990 a 1995. Professora no Curso de Estágio da Ordem dos Advogados do Brasil Subseção São Paulo, de 1990 a 1995. Membro do IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito das Famílias.

Fonte: Migalhas

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