O direito à autonomia na escolha do regime de bens: Entre idade e vulnerabilidade

O direito à autonomia na escolha do regime de bens: Entre idade e vulnerabilidade

Autor: Patricia Novais Calmon | Data de publicação: 11/05/2023
Patricia Novais Calmon

Advogada. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo. Vice-Presidente da Comissão Estadual da Pessoa Idosa da OAB-ES. Presidente da Comissão do Idoso do IBDFAM-ES.

Resumo: Este artigo busca analisar como a declaração de inconstitucionalidade da separação obrigatória de bens pelas pessoas idosas septuagenárias (art. 1.641, II, CC2002) é medida adequada para a proteção efetiva dos direitos da pessoa idosa, analisando, neste texto, especialmente a violação aos direitos à autonomia e à igualdade. Adicionalmente, se avaliará como o advento do Estatuto da Pessoa com Deficiência inaugurou uma nova sistemática da curatela à pessoa incapaz, reforçando a inconstitucionalidade da separação obrigatória de bens à pessoa capaz septuagenária, gerando uma nítida incongruência sistêmica, pois, na atual previsão normativa vigente, se garantiria à pessoa incapaz maior autonomia do que se deferiria à pessoa capaz, pelo simples fato de contar com mais de 70 anos de idade.

1. O DIREITO À AUTONOMIA DA PESSOA IDOSA, DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E DA PESSOA INCAPAZ

É um tanto quanto intuitivo falar sobre autonomia. De um modo ou outro, qualquer um sabe o que é, ou não, em cada caso, ser autônomo na condução da sua vida. Todo esse olhar intuitivo, na visão do direito, se manifesta de formas distintas, pois ao mesmo tempo em que é um direito, também é considerado um princípio norteador do ramo da ciência jurídica nominado como Direito da Pessoa Idosa.

No campo da pessoa idosa, a autonomia estaria profundamente relacionada com a garantia de que se possam exercer, com igualdade, todos os direitos que são deferidos às demais pessoas. Vincula-se com a possibilidade de uma pessoa tomar as suas próprias decisões, estar no controle de sua própria vida, autodeterminar-se da forma que reputar mais apropriado, inclusive com senso de responsabilidade e de autogoverno. No mesmo sentido, a professora inglesa Gaye Heathcote ensina que “a autonomia, intimamente associada ao bem-estar e ao empoderamento, foi mantida para implicar controle sobre a própria vida, oportunidades para fazer escolhas, e sentir-se confortável ao desenvolver e utilizar os próprios recursos pessoais.”[1]

A autonomia, dessa forma, anda de mãos dadas com a igualdade, pois, afinal, só se tem autonomia efetiva se a lei deferir diretos iguais para todos. Senão, a autonomia estará severamente limitada.

Curiosamente, o Estatuto da Pessoa Idosa não tem nenhuma referência à igualdade, embora trate expressamente da não discriminação em algumas passagens. É de se estranhar tamanha omissão, pois, afinal, é de conhecimento geral que a pessoa idosa pode, sim, ter maiores dificuldades no exercício de direitos em igualdade com os demais, tal como acesso ao trabalho e à educação, por exemplo. Na prática, infelizmente, é o que se vê a todo tempo.

Neste cenário, é injustificável (ainda) não existir um foco normativo especial para a garantia da igualdade da pessoa idosa, principalmente diante da atual episteme constitucional inaugurada em 1988.

É de se dizer, então, que tal perspectiva normativa pode ser profundamente alterada a partir da internalização, no Brasil, da Convenção Interamericana dos Direitos Humanos da Pessoa Idosa (CIDHPI), aprovada em 2015, pela Organização dos Estados Americanos e em tramitação na Câmara dos Deputados pelo PDC 863/2017. Esta Convenção, tida como a primeira do mundo sobre direitos humanos da pessoa idosa, traz uma nova tônica para os direitos da pessoa idosa, colocando o direito à igualdade em evidência.

Muitas são as passagens que refletem que a pessoa idosa terá o direito a exercer, autonomamente, todos os direitos que são deferidos às demais pessoas, em igualdade de condições. A principal delas está prevista no artigo 1º, que prevê os objetivos e âmbito de aplicação da Convenção, ao consignar que “o objetivo da Convenção é promover, proteger e assegurar o reconhecimento e o pleno gozo e exercício, em condições de igualdade, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais do idoso, a fim de contribuir para sua plena inclusão, integração e participação na sociedade”. A importância deste artigo é enorme, pois ele retrata o nobre propósito que a Convenção tenta inaugurar: a garantia de plena participação da pessoa idosa na sociedade, com igualdade de condição com as demais pessoas, e para o exercício pleno de todos os direitos.

Aliado a isso e reforçando sua importância, um dos princípios regentes da Convenção é o princípio da igualdade e não discriminação (art. 3º, “d”).

Para além de um direito que reflete em outros direitos, a garantia da igualdade e não discriminação pode ser tida como um direito autônomo. Quer dizer que, embora outros direitos tenham que ser exercidos com a especial característica da igualdade, esta, por si, deve ser considerada um direito único e que espraia seus efeitos para cenários muito mais abrangentes.

A igualdade como direito autônomo é consignada no art. 5º da CIDHPI, enquanto no art. 30 consta o direito à igual reconhecimento como pessoa perante a lei, devendo os Estados Partes reconhecerem que "o idoso tem capacidade jurídica em igualdade de condições com as demais pessoas em todos os aspectos da vida" e que devem tomar medidas pertinentes e efetivas para garantir o direito da pessoa idosa, em igualdade de condições com as demais pessoas, a ser  proprietário e herdar bens e a controlar seus próprios assuntos econômicos.

Já no artigo 7º, dispõe que o direito à independência e à autonomia devem ser exercidos em igualdade de condições com as demais pessoas. Aqui, o vínculo entre a autonomia e a igualdade é nítido.

Outros direitos também devem ser garantidos também com igualdade: o direito à participação e integração comunitária (art. 8º); o direito à liberdade pessoal (art. 13); o direito à liberdade de expressão e opinião e ao acesso à informação (art. 14); o direito ao trabalho (art. 18); o direito à educação (art. 20); o direito à cultura (art. 21); o direito a um meio ambiente saudável (art. 25); o direito à acessibilidade e à mobilidade pessoal (art. 26); os direitos políticos (art. 27) e, ainda; o direito de acesso à justiça (art. 31).

No mesmo caminho da igualdade, a Convenção ainda se preocupa bastante com a não discriminação. Para tanto, há uma conceituação do que se considera como “discriminação” e, especialmente em relação à pessoa idosa, trata do conceito da “discriminação por idade na velhice”, que consiste em “qualquer distinção, exclusão ou restrição baseada na idade que tenha como objetivo ou efeito anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício em igualdade de condições dos direitos humanos e liberdades fundamentais na esfera política, econômica, social e cultural ou em qualquer outra esfera da vida pública e privada” (art. 2º).

Pois bem.

Parece que a Convenção Interamericana dos Direitos Humanos da Pessoa Idosa bebeu da mesma fonte que a Convenção de Nova York (promulgada no Brasil pelo Decreto n. 6.949, de 2009), pois esta última também teve o nobre propósito de inclusão social da pessoa com deficiência, garantindo a ela o exercício de direitos em igualdade de condições com as demais. Salienta-se que a Convenção de Nova York tem força de emenda constitucional, pois aprovada nos moldes previstos no art. 5º, §3º, da CF/88 (uma das raras Convenções internacionais aprovada nestes moldes).

A revolução proporcionada pela Convenção de Nova York foi tão grande que fez com que o ordenamento jurídico brasileiro precisasse se adequar a este novo paradigma. Motivou a aprovação do Estatuto da Pessoa com Deficiência, de 2015, que trouxe modificações extremamente relevantes para o direito civil como um todo. Não obstante o Estatuto da Pessoa com Deficiência não seja um “estatuto da pessoa incapaz” (muito pelo contrário!), ele alterou a denominada teoria das incapacidades, alterando profundamente a sistemática da curatela e inaugurando a previsão normativa sobre o instituto da tomada de decisão apoiada (que, diga-se de passagem, regulamenta uma faculdade exclusiva da pessoa com deficiência capaz!).

É possível afirmar, então, que o Estatuto da Pessoa com Deficiência, talvez até mesmo como um reforço da diferença existente entre a pessoa incapaz e a pessoa com deficiência, modificou a estrutura jurídica da tutela das pessoas incapazes. A partir de então, evidenciou-se que, para que uma pessoa com deficiência, ou idosa, sejam consideradas incapazes, deverá ocorrer concomitantemente alguma das causas previstas no art. 4º do CC2002, devendo existir, ainda, uma sentença decretando a curatela. Em todos os outros casos, ela é considerada plenamente capaz, devendo exercer autonomamente e com igualdade todos os direitos fundamentais garantidos aos demais.

Não é à toa que se está abordando sobre a correlação existente entre a Convenção Interamericana dos Direitos Humanos da Pessoa Idosa (e o Estatuto da Pessoa Idosa) e a Convenção de Nova York (e Estatuto da Pessoa com Deficiência). É que, por ocasião da modificação das previsões relacionadas à teoria das incapacidades, criou-se, no contexto da pessoa idosa, uma incoerente sistemática na qual a pessoa idosa septuagenária, por ocasião da constituição do matrimônio, tenha menos direitos do que uma pessoa juridicamente considerada incapaz.

Se deve ser garantido à pessoa idosa, da mesma forma que a pessoa com deficiência, o exercício de direitos em condições de igualdade, dissociando destes segmentos a correlação com incapacidade, é intuitivo afirmar que competirá, à pessoa idosa (bem como à pessoa com deficiência), o exercício de direitos em maior amplitude do que à pessoa incapaz. Afinal, a diferenciação jurídica entre exercício de direitos deve ser apenas esta: entre pessoas capazes e pessoas incapazes.

Alegações de “vulnerabilidade” seriam demasiadamente subjetivas para que flexibilizassem o exercício pleno de direitos por estes segmentos sociais.

Por isso, sendo a pessoa capaz, não existe fundamento para restringir o exercício de direitos, devendo ser tida como discriminatória qualquer previsão em sentido contrário. Lado outro, sendo ela incapaz, a restrição ao exercício de direitos, notadamente aqueles de natureza patrimonial/negocial, é razoável e está em consonância com a proteção jurídica deferida a ela.

Não é isso, contudo, que o sistema jurídico brasileiro prevê. De certo modo, estabelece, de maneira irracional e em completa assimetria sistêmica, que a pessoa idosa septuagenária, simplesmente pelo fato da idade, não pode escolher o regime de bens por ocasião do matrimônio. Lado outro, a lei, ao deferir à pessoa incapaz a possibilidade de exercitar livremente o seu direito ao matrimônio, não repetiu o mesmo regramento restritivo sobre o regime de bens. Pense, então: a lei deferiu mais direitos à pessoa incapaz do que à pessoa idosa? Incoerente, não?

Esta é a tônica do que se passará a analisar nas linhas que se seguem.

2. O REGRAMENTO DA ESCOLHA DO REGIME DE BENS DA PESSOA IDOSA E DA PESSOA INCAPAZ

No que toca aos aspectos patrimoniais das uniões familiares, sabe-se que eles serão regidos pelas regras provenientes do regime de bens, o qual representa o conjunto de normas destinadas a disciplinar os aspectos econômico-financeiros das relações jurídicas travadas pelo casal entre si e com terceiros.

A regulamentação do regime de bens é feita pelo Código Civil, que, para além de definir o regime legal supletivo (regime de comunhão parcial de bens – art. 1.640, CC), ainda prevê a possibilidade que as partes realizem pactos antenupciais no caso de escolha de regime de bens diverso do legal.

Nestas situações, a autonomia da vontade é fundamental na delimitação desse estatuto patrimonial das famílias. Trata-se, inclusive, do princípio da liberdade de estipulação, de modo que é lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver, como deixa claro o art. 1.639 do Código. Da doutrina, colhe-se que “considerando o princípio da autonomia privada – norteador de toda e qualquer relação civil – é, naturalmente, possível que os consortes escolham livremente as regras que irão nortear o casamento, respeitados determinados limites impostos expressamente pelo legislador na proteção da pessoa humana”.[2]

Em alguns casos, contudo, o CC2002 define que algumas pessoas não têm autonomia, incidindo, de maneira obrigatória, o regime de separação de bens. A regulamentação do tema é feita pelo art. 1.641, II, do Código Civil, ao dispor que:

Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:

I - das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento;

II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos;

III - de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial.

Pelo teor do inciso II, é clara a intenção do legislador em impor este regime de bens às pessoas idosas com mais de 70 anos de idade, independentemente da análise de qualquer quadro de incapacidade. Ou seja, o dado é objetivo: basta ter 70 anos para que haja a incidência direta deste dispositivo legal (por outro lado, se ela tiver 69 anos e 11 meses de vida, abre-se a possibilidade de escolha do regime). Questões subjetivas e individuais não são analisadas e sequer ponderadas pelo juízo por ocasião da necessidade de partilha dos bens.

Quanto à evolução legislativa do dispositivo legal, pontua-se que o CC2002 apenas reproduziu regramento semelhante àquele contido no CC1916, época em que a sociedade era muito diferente da atual. Na época do CC1916, o artigo 258, parágrafo único, II, consignava que o regime de separação obrigatória de bens era imposto aos homens com mais de 60 anos e às mulheres com idade superior a 50 anos. Já o CC2002 em sua redação originária, apenas reproduziu o regramento existente, equiparando a idade dos homens e mulheres, para que, independentemente do sexo, houvesse a aplicação deste regime às pessoas com mais de 60 anos de idade (art. 1.641, II, redação original). Em 2010, a Lei nº 12.344/10 modificou a redação do referido dispositivo legal, aumentando para 70 anos a referida imposição legal (art. 1.641, II, redação atual).

Salienta-se que antes mesmo do CC2002 entrar em vigor, a I Jornada de Direito Civil promovida pelo Conselho da Justiça Federal (JDC/CJF), realizou uma proposta para a revogação do artigo 1.641, inciso II, do Código Civil, sob a justificativa de que a “norma que torna obrigatório o regime da separação absoluta de bens em razão da idade dos nubentes não leva em consideração a alteração da expectativa de vida com qualidade, que se tem alterado drasticamente nos últimos anos. Também mantém um preconceito quanto às pessoas idosas que, somente pelo fato de ultrapassarem determinado patamar etário, passam a gozar da presunção absoluta de incapacidade para alguns atos, como contrair matrimônio pelo regime de bens que melhor consultar seus interesses” (Proposição n. 125).

Em vez de revogar, como se viu, o legislador apenas alterou o critério etário para 70 anos.

Não obstante a disposição legal possuir uma narrativa em prol dos direitos da pessoa idosa (e, implicitamente, em favor dos herdeiros), já que se não fosse tal regra, ela possivelmente estaria sujeita a relacionamentos predatórios (o famoso “golpe do baú”), a verdade é que, nos dias de hoje, sua prescrição ostenta um indevido caráter limitador da autonomia da pessoa idosa, não levando em consideração o avanço da ciência e a vida longa, plena e com qualidade de vida da população.

Para aliviar e rigidez da imposição do regime de separação obrigatória de bens, a jurisprudência caminhou no sentido de reputar possível a análise da comunicabilidade de alguns bens, caso houvesse esforço comum. Tal posicionamento foi cristalizado pelo Enunciado de Súmula 377, do STF, que consigna que “no regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento”. Por muito tempo, a jurisprudência se posicionou no sentido de que havia presunção de esforço comum, sendo que, a partir de 2015 o STJ fixou posicionamento que deveria, por outro lado, haver comprovação do esforço comum.

Para provar que o entendimento sufragado pelo STJ está mais atual do que nunca, editou-se o Enunciado de Súmula 655, em 2022, ampliando o mesmo regramento da separação obrigatória de bens (com comunicação de bens se houver comprovação do esforço comum) à união estável da pessoa com mais de 70 anos de idade.

O problema de tudo isso é que, esta discussão, que há anos ronda os julgados dos tribunais de superposição, se embasa em previsão contida no CC1916, mas que não foi reproduzida no CC2002. Na época de elaboração da Súm. 377 do STF, no ano de 1964, ainda vigia o CC1916, que tinha disposição expressa, em seu art. 259, de que “embora o regime não seja o da comunhão de bens, prevalecerão, no silêncio do contrato, os princípios dela, quanto à comunicação dos adquiridos na constância do casamento”.

Isso significa que, naquela época, a própria lei autorizava a aplicação da lógica de comunhão ao regime de separação obrigatória de bens. Não mais.

A partir do advento do CC2002, parece não ter mais sentido a continuidade na aplicação do teor da Sum. 377 do STF. Entretanto, ela continuou a ser aplicada: sem fundamento legal, criando um sistema distinto daquele previsto pela vigente legislação. Pela jurisprudência, criou-se um instituto que pode ser cunhado como “regime de comunhão parcial condicionado”, mas, sem dúvida, não há lei que ampare tal lógica. Por isso, defende-se que toda esta teoria por detrás da Súmula 377 do STF e dos posicionamentos do STJ, esbarra na ilegalidade.

Mas, diante da atual conjuntura social da pessoa idosa, que deve ter os seus direitos garantidos em igualdade de condições com todas as demais pessoais, não é suficiente falar na ilegalidade dos posicionamentos jurisprudenciais. Defender a mera ilegalidade seria impor, realmente, o regime de separação obrigatória de bens sem qualquer tipo de flexibilização (uma aplicação rígida e fria da lei).

Por isso, deve-se ir além! É indispensável defender a inconstitucionalidade do regime de separação obrigatória de bens para as pessoas com mais de 70 anos de idade, pois não há dúvida que esta previsão restritiva da autonomia da vontade vai de encontro com premissas de enorme envergadura no nosso sistema e com previsão constitucional. Não é demais recordar que um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil é promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV, CF).

Na visão da doutrina, “esta regra não encontra justificativa econômica ou moral, pois que a desconfiança contra o casamento dessas pessoas não tem razão para subsistir. Se é certo que podem ocorrer esses matrimônios por interesse nestas faixas etárias, certo também que em todas as idades o mesmo pode existir. Trata-se de discriminação dos idosos, ferindo os princípios da dignidade humana e da igualdade”.[3]

A alegação de inconstitucionalidade, ao contrário da tese da mera ilegalidade, garantiria que a pessoa idosa septuagenária pudesse escolher, da mesma forma que qualquer outra pessoa, o regime de bens aplicável ao seu matrimônio.

Se a questão, por si, já parece violadora dos direitos da pessoa idosa, quando se analisa o panorama criado para a pessoa incapaz a partir do advento do Estatuto da Pessoa com Deficiência, a questão fica ainda mais incoerente. É o que se passa a analisar no próximo e derradeiro tópico.

3. A INCOERÊNCIA SISTÊMICA DA SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS DA PESSOA SEPTUAGENÁRIA A PARTIR DA MUDANÇA DA “TEORIA DAS INCAPACIDADES”: A QUEBRA DA LÓGICA SISTÊMICA E REFORÇO DA SUA INCONSTITUCIONALIDADE

Como dito, o Estatuto da Pessoa com Deficiência alterou profundamente a sistemática da teoria das incapacidades.

Inaugurou um regime jurídico distinto para a curatela, que, a partir de então, somente[4] abrangerá questões patrimoniais e negociais, permanecendo dentro do campo da autonomia da pessoa incapaz a prática dos atos de natureza existencial. Isto é, ela poderá realizar estes atos de maneira pessoal, sem assistência do curador.

Assim, conforme previsão do art. 85 do Estatuto da Pessoa com Deficiência, a curatela não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto.

Mesmo definindo que o matrimônio pode ser livremente exercido pela pessoa incapaz (curatelada), nada definiu sobre o regime de bens aplicável ao caso. Setores da doutrina começaram a disseminar a ideia de que o regramento deveria ser aplicado da seguinte forma: caso o matrimônio seja realizado sem assistência do curador (que necessariamente deveria auxiliar na confecção de um pacto antenupcial), deveria incidir o regime legal supletivo, isto é, o regime de comunhão parcial de bens.[5] A mesma lógica deveria ser aplicada no caso de formação de uniões estáveis.

Pense que situação incoerente: pela nova normativa inaugurada pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, a pessoa incapaz teria mais autonomia do que a pessoa capaz septuagenária.

É que, em verdade, aplicando-se o regime de comunhão parcial de bens no caso de inexistência de pacto antenupcial (e assistência do curador), estaria sendo autorizado que, indiretamente, a própria pessoa incapaz decidisse aspectos importantes do seu patrimônio, pois, como se sabe, a partir do início da união, os bens adquiridos onerosamente seriam comunicáveis com o seu cônjuge.[6]

Como o matrimônio livremente celebrado pela pessoa incapaz também teria um viés patrimonial, reafirma-se, então, que a sua autonomia na celebração do casamento teria um peso maior do que a autonomia da pessoa idosa, e capaz, com mais de 70 anos.

E nem se cogite que a previsão contida no art. 1.641, III, do CC2002, poderia atrair o regime de separação obrigatória de bens às pessoas incapazes (“É obrigatório o regime da separação de bens no casamento: III - de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial”), pois não se exige suprimento judicial do matrimônio da pessoa incapaz.

Esta lógica reforçou a inconstitucionalidade da regra que prevê a separação obrigatória de bens às pessoas idosas septuagenárias. Afinal, como o sistema poderia admitir que uma pessoa capaz teria menos direitos do que uma incapaz?

Isso faz com que, de fato, a inconstitucionalidade do art. 1.641, II, do CC2002, precise ser debatida cada vez mais.

Os Tribunais Estaduais brasileiros estão, pouco a pouco, reconhecendo a inconstitucionalidade do dispositivo. É o caso do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, ao julgar o Incidente de Inconstitucionalidade nº 1.0702.09.649733-5/002 e consignar que é “inconstitucional a imposição do regime de separação obrigatória de bens no casamento do maior de sessenta anos, por violação aos princípios da igualdade e dignidade humana”.[7]

Também o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul já entendeu que “a restrição imposta no inciso II do art. 1.641 do Código vigente, correspondente do inciso II do art. 258 do Código Civil de 1916, é inconstitucional, ante o atual sistema jurídico que tutela a dignidade da pessoa humana como cânone maior da Constituição Federal, revelando-se de todo descabida a presunção de incapacidade por implemento de idade”.[8]

Muitos são os fundamentos da inconstitucionalidade: a) restringe a autodeterminação da pessoa idosa, em descompasso com as previsões do Estatuto da Pessoa Idosa e, ainda, da Convenção Interamericana dos Direitos Humanos da Pessoa Idosa; b) viola o princípio da dignidade da pessoa humana; c) afronta o direito e princípio da autonomia; d) afronta o direito e princípio da igualdade; e) colide com a intervenção mínima do Estado nas relações de família; f) não possui razoabilidade entre a finalidade, a norma e os valores por ela comprometidos, conforme já se sustentou no livro “Direito das Famílias e da Pessoa Idosa” (CALMON, Patricia Novais. Editora Foco, 2023).

No ano de 2022, o STF reconheceu a repercussão geral da separação obrigatória de bens aos maiores de 70 anos de idade. A matéria é objeto do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1309642, que teve a repercussão geral reconhecida pelo Plenário (Tema 1.236).

O interessante neste caso é que, em controle difuso, o magistrado de piso reconheceu a inconstitucionalidade da mencionada regra, ao entendimento de que “a previsão fere os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade. De acordo com a decisão, a pessoa com 70 anos ou mais é plenamente capaz para o exercício de todos os atos da vida civil e para a livre disposição de seus bens”.[9] Posteriormente, a matéria foi reformada no âmbito do Tribunal de Justiça de São Paulo, que aplicou a integralmente a lei, pois sua intenção “é proteger a pessoa idosa e seus herdeiros necessários de casamentos realizados por interesses econômico-patrimoniais”.[10]

Agora, basta aguardar a decisão do STF a respeito da temática.

REFERÊNCIAS

CALMON, Patricia Novais. Direito das Famílias e da Pessoa Idosa. Indaiatuba-SP: Foco, 2023.

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das famílias. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 296.

HEATHCOTE, Gaye. Autonomy, health and ageing: transnational perspectives. Health Education Research, Volume 15, Issue 1, February 2000, Pages 13–24, https://doi.org/10.1093/her/15.1.13. Disponível em: https://academic.oup.com/her/article/15/1/13/775695. Acesso em: 04 out. 2021.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: direito de família. 28. ed. Revista e atualizada por Tânia da Silva Pereira. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 225.

[1] Tradução literal de “autonomy, closely associated with well-being and empowerment, was held to imply control over one's life, opportunities to make choices, and feeling confortable resources developing and using one's personal resources (Heathcote, 1996, 1997). These desirable processes or states, summarized as self-determination, self-government, a sense of responbility and self-determination (Downie et al., 1990), demand an essential reference to others - their feelings, plans and undertandings - and can only therefore be realized in a social contexto” HEATHCOTE, Gaye. Autonomy, health and ageing: transnational perspectives. Health Education Research, Volume 15, Issue 1, February 2000, Pages 13–24, https://doi.org/10.1093/her/15.1.13. Disponível em: https://academic.oup.com/her/article/15/1/13/775695. Acesso em: 04 out. 2021.

[2] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das famílias. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 296.

[3] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: direito de família. 28. ed. Revista e atualizada por Tânia da Silva Pereira. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 225.

[4] A exceção está descrita no Enunciado 637 da VIII JDC/CJF: “Admite-se a possibilidade de outorga ao curador de poderes de representação para alguns atos da vida civil, inclusive de natureza existencial, a serem especificados na sentença, desde que comprovadamente necessários para proteção do curatelado em sua dignidade”.

[5] Disponível em: Artigo disponível em: https://civel.mppr.mp.br/arquivos/File/Artigo_MPSP_LBI_Reflexos_atuacao_MP.pdf. Acesso em 11 mai. 2023.

[6] Na tentativa de regulamentar a questão, o PL 11.091/2018, visa descrever que a curatela “afeta tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial, nesses abrangidos os pactos antenupciais e o regime de bens, não alcançando os direitos ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio ou à união estável, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto”. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1696382&filename=PL%2011091/2018. Acesso em 11 mai. 2023.

[7] TJMG, ARG: 10702096497335002/MG, Rel: José Antonino Baía Borges, Órgão Especial, DJe de 21/03/2014.

[8] TJRS, Apelação nº 70004348769, Rel. Des. Maria Berenice Dias, 7ª Câmara Cível, Julgado em 27/08/2003.

[9] Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=495189&ori=1#:~:text=STF%20vai%20discutir%20obrigatoriedade%20de,julgamento%20do%20m%C3%A9rito%20da%20controv%C3%A9rsia. Acesso em 12 jan. 2023.

[10] Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=495189&ori=1#:~:text=STF%20vai%20discutir%20obrigatoriedade%20de,julgamento%20do%20m%C3%A9rito%20da%20controv%C3%A9rsia. Acesso em 12 jan. 2023.

Fonte: IBDFAM

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