Por um Código Penal democrático

Por um Código Penal democrático

"Produzir um novo Código Penal praticamente a portas fechadas, sem debater intensamente com a sociedade civil e a comunidade jurídica, equivale a desrespeitar os mais elementares princípios democráticos e republicanos. Significa retroceder ao autoritarismo, ao arbítrio."
 


Comissão de juristas no Congresso analisa projeto do novo Código Penal(Foto: )

Confira a análise de Miguel Reale Jr., advogado, escritor, professor titular de direito penal da USP. Foi ministro da Justiça (governo FHC), de Renato de Mello Jorge Silveira, advogado, professor titular de direito penal da USP e presidente do Instituto Manoel Pedro Pimentel, Roberto Livianu, promotor de Justiça em São Paulo, vice-presidente do Movimento do Ministério Público Democrático e doutor em direito penal pela USP e Ferrnando Figueiredo Bartoletti, juiz de direito em São Paulo e primeiro vice-presidente da Apamagis (Associação Paulista de Magistrados.

Segundo eles, "são tantos os problemas que o projeto se mostra inaproveitável".

Eis a análise:

Quando, em 1748, no alvorecer iluminista, Montesquieu apresentou a teoria da tripartição do poder em "O Espírito das Leis", propôs uma nova concepção de Estado, com os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário independentes e se autocontrolando, em um sistema de freios e contrapesos.

Para que esse sistema seja eficaz, pressupõe-se que as leis brotem de um processo legislativo plenamente democrático e um profundo e intenso debate com a sociedade e seus representantes no parlamento.

Desde o Código Criminal do Império, em 1824, todos os códigos penais brasileiros seguiram o roteiro de Montesquieu, especialmente porque leis dessa natureza devem ser retrato dos valores sociais de suas épocas e regulam condutas, definindo períodos de prisão pela prática de crimes em grandezas proporcionais à gravidade das condutas.

Nos dias de hoje, ninguém nega a necessidade de reforma das leis penais, até porque a parte especial do código é de 1940. Além disso, a violência que assola o Brasil demanda esta revisão, porque a legislação atual é mesmo falha e arcaica.

Mas produzir um novo Código Penal praticamente a portas fechadas, sem debater intensamente com a sociedade civil e a comunidade jurídica, equivale a desrespeitar os mais elementares princípios democráticos e republicanos. Significa retroceder ao autoritarismo, ao arbítrio.

Por que tanta pressa em aprovar o projeto Sarney, sem um debate de verdade, exaustivo, sem o submeter a uma comissão revisora, como se fez ao longo da história do direito penal brasileiro? Por que aprová-lo sem que a Comissão de Constituição e Justiça do Senado se pronuncie?

Esse açodamento incompreensível gerou um resultado muito ruim, que uniu personagens sempre antagônicos no dia a dia da interpretação da lei penal e na distribuição da justiça criminal: Ministério Público e advocacia/Defensoria Pública.

É óbvio que se os entendimentos sempre antípodas convergem totalmente, é imperioso parar e refletir. Isso não é comum.

No último dia 24 de setembro, no lotado salão nobre da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em ato público em defesa do direito penal com repúdio ao projeto Sarney, estavam irmanados advogados, promotores de Justiça, magistrados, defensores públicos, professores, estudiosos e estudantes.

Eram 19 entidades e instituições do mundo jurídico: OAB, tanto federal como seccionais, os mais que centenários Instituto dos Advogados do Brasil e Instituto dos Advogados de São Paulo, além da Associação dos Advogados de São Paulo, Defensoria Pública, Ministério Público de São Paulo, o Movimento do Ministério Público Democrático, a Associação Paulista do Ministério Público e sua Escola Superior, além de diversas entidades acadêmicas e científicas, como o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, Instituto de Defesa do Direito de Defesa, entre muitos outros.

Não se trata de tecer críticas às opiniões da comissão de juristas no anteprojeto. Nem das opções de política criminal da comissão. Não se pretendeu abordar o caráter mais ou menos carcerizante do projeto.

A preocupação das mencionadas entidades diz respeito a graves vícios de forma constatados na proposta, com certeza gerados pela falta de revisão e profunda e efetiva discussão. E são tantos os problemas que o projeto se mostra inaproveitável.

Outras veementes oposições já se fazem presentes em tantos outros pontos do Brasil. No Rio de Janeiro, por exemplo, ocorreu importante seminário, com Juarez Tavares, que apontou, sob o ponto de vista dogmático, incontáveis equívocos formais na constituição da proposta legislativa. No Paraná também vozes importantes se levantam, como a de René Ariel Dotti.

A questão é absolutamente preocupante. Deve, sim, a opinião pública ser chamada à discussão. Mas, além disso a ela deve ser feito o alerta do maior perigo que se verifica na possibilidade de aprovação de um código como este, porque até uma eventual correção de rumos pelo Poder Judiciário ou por novo código, talvez os estragos sejam irreparáveis.

 

O artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 04-10-2012.
Extraído de Dom Total

"Seu comentário": Por um Código Penal democrático

Nenhum comentário foi encontrado.

Novo comentário

Notícias

União estável pós-morte deve ser julgada no último domicílio do casal

Direitos sucessórios União estável pós-morte deve ser julgada no último domicílio do casal 19 de dezembro de 2024, 12h31 No recurso especial, a mulher alegou que a competência seria do juízo do domicílio do réu apenas se nenhuma das partes morasse no lugar do último domicílio do suposto...

Reforma do Código Civil, regime de bens dos cônjuges e sociedades empresárias

Opinião Reforma do Código Civil, regime de bens dos cônjuges e sociedades empresárias Maria Carolina Stefano Pedro Gabriel Romanini Turra 13 de dezembro de 2024, 6h31 O Código Civil Brasileiro, em seu artigo 977, estabelece que “faculta-se aos cônjuges contratar sociedade, entre si ou com...

TJ/MT vê apartamento como bem familiar e determina impenhorabilidade

Penhora TJ/MT vê apartamento como bem familiar e determina impenhorabilidade Colegiado entendeu que imóvel é usado como residência familiar, garantindo sua proteção como bem de família. Da Redação segunda-feira, 9 de dezembro de 2024 Atualizado em 10 de dezembro de 2024 08:32 A 4ª câmara de Direito...